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    Quando a fraude dá baile com um ar grave

    Em 2003, em declarações à imprensa, o então Reitor da Universidade Agostinho Neto, revelava a existência de falsos Diplomas de Doutoramento em Angola, tendo afirmado que  “a Reitoria recolheu esses diplomas e entregou-os à Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) e aos Serviços de Informação que, ao fazerem o levantamento, constataram que os documentos eram falsos”.
    Em 2006, o Bastonário da Ordem dos Médicos, referindo-se à descoberta de falsos médicos no país, afirmava ser “um caso de polícia porque trataram de situações para as quais não estavam habilitados. Além de serem falsos profissionais, os mesmos podem ter causado várias mortes e produzido incapacidades em muitas pessoas e por isso o caso já foi entregue à polícia e deverão responder por estes crimes”; no dia 16 de Setembro de 2010, a Angop noticiava: “16 falsos médicos e enfermeiros foram detidos de Janeiro a Agosto do presente mês no país, incorrendo na pena de dois a oito anos de cadeia por exercício ilegal de profissão titulada, de acordo com a lei penal.”
    Em 2011, numa entrevista ao Jornal de Angola, o Bastonário da Ordem dos Advogados afirmou: “Temos colegas que recebem dinheiro de cidadãos e não prestam trabalho. Muitos nem sequer são advogados. Por isso, precisamos da cooperação com os serviços policiais e prisionais para travarmos este fenómeno”. Indagado sobre os procedimentos em caso de detecção de um falso advogado, informou ser “um caso de polícia por se tratar de exercício ilegal de profissão”.

    Uma área de saber autónoma

    Vem isto a propósito da nossa triste realidade em que grande parte das pessoas ainda não aceitaram a ideia de que a dança é uma área autónoma de saber e de ciência, como o são a medicina, a advocacia, a engenharia ou qualquer outra, com a particularidade de que as formações nesta área são mais demoradas, com início ainda no ensino de base. Sob a exigência de muitos sacrifícios e empenho, o futuro profissional de dança deve, idealmente, iniciar a sua formação aos 10 anos de idade prosseguindo, através de um ensino médio especializado, que lhe dá acesso aos diversos níveis universitários (Licenciatura, Mestrado, Doutoramento e Pós-Doutoramentos), à semelhança de qualquer área académica. Portanto, não se pode ser professor de dança sem que o corpo tenha passado por uma prática de pelo menos oito anos e sem que se tenha estudado pedagogia, psicologia, metodologias específicas, música e anatomia. Tal como um falso médico pode matar alguém, um falso professor de dança pode provocar lesões sérias com consequências irreversíveis nos sistemas músculo-esqueléticos dos seus alunos. Obviamente que tão pouco se pode ser coreógrafo sem se passar pela carreira de bailarino profissional.

    Todavia, são cada vez mais os falsos coreógrafos, os falsos professores de dança e os falsos bailarinos que têm vindo a ser “inventados” e promovidos, movendo-se impunemente na nossa sociedade. Mas em Angola não funciona nenhum mecanismo ou procedimento que controle e penalize os falsos profissionais (acredito que a UNAC estará atenta na atribuição de carteiras profissionais). Como a chamada “arte séria” ainda não conquistou o seu espaço, o terreno está livre para todo o tipo de equívocos.

    Falta de referências leva público ao engano

    O grande público, não tendo as referências fundamentais, pois nunca existiu em Angola, mesmo na época colonial, um sistema forte quer de ensino, quer de divulgação da dança cénica (e, portanto, não se herdaram quaisquer infra-estruturas como aconteceu com a Universidade, por exemplo), incorre facilmente em erro quando estes falsários se apresentam com o seu ar sério e grave para nos “dar bailes” que vão do salão ao clássico, passando pelo moderno, pelo contemporâneo e pelo, tão maltratado, tradicional. Para se defenderem da sua visão obtusa, têm sempre à mão a já bafienta artimanha da “dança no sangue” e as conjecturas armadilhadas sobre o que é “o nosso”, numa tentativa desesperada de encobrir as evidências universais de que o talento só germina com a formação, de que o profissional se cria na Escola, de que o Artista só nasce do ventre do Mestre e de que as artes, como tudo, estão abertas ao mundo.
    Na base deste problema, está a carência de uma classe de profissionais da dança em Angola da qual decorre, forçosamente, a falta de difusão e de um domínio mais alargado dos conceitos, terminologia, definições, pressupostos éticos e uma resistência efectiva a estas situações de fraude.
    Adiantando-me às deturpações costumeiras, ressalvo o meu particular respeito pelas populações predominantemente rurais, as únicas que reconheço como verdadeiros guardiães do nosso património (em muitos casos em risco de extinção), conservando-o de forma notável e genuína, mantendo-o vivo através das escolas de iniciação e de outras práticas e cerimónias ancestrais, bem como reconheço a antiguidade de alguns grupos de vocação tradicional pela sua persistência. Por outro lado, encorajo os poucos profissionais angolanos, na sua maioria meus antigos alunos (já com a sua formação superior entretanto concluída), a prosseguirem na defesa da dança profissional e na formação de novos públicos, através da sua actividade como professores.
    É saudável que os jovens se organizem em grupos de recreação e amadores como actividade de ocupação de tempos livres; é até interessante que eles organizem pequenos espectáculos a nível dos bairros e municípios.

    O erro de “Dança Comigo”

    Inaceitável é enganar esses jovens, incitando-os de forma irresponsável ao estrelato fácil e dando-lhes acesso aos palcos, sem quaisquer restrições, em desrespeito pelos verdadeiros artistas, reconhecidos pela sua formação e carreiras de longa experiência.
    E vem tudo isto a propósito de um espectáculo a que assisti há dias na Liga Africana integrado num projecto intitulado “Dança Comigo”, curiosamente a designação de um programa da televisão portuguesa, com o qual alguma semelhança ou coincidência seria mera alucinação.
    O cartaz prometia, de forma abusiva, o “melhor da dança contemporânea, tradicional, folclórica e moderna”, num texto hilariante onde se contavam, pelo menos, 11 erros ortográficos.
    Anunciado como um espectáculo de variedades – como se este conceito de espectáculo significasse reunião de vários grupos –, o “show” (termo errado para designar um espectáculo de dança, mas aplicável àquele caso) integrou apenas grupos de dança constituídos por jovens alegres e dinâmicos, alguns dos quais com muito talento, cujos “esquemas” (e não coreografias), sem interesse criativo ou inovador, denunciavam falta de qualidade técnica e valor artístico; era apenas mais das mesmas danças (todas iguais) das festas. Lembrei-me que até o “Esquema” ou “Dança da família” eram mais interessantes, dada a sua organização quase espontânea, em que todos nos movíamos sincronizados sem ser preciso ensaiar. Mas isto não é para o palco, é para a farra! E o espectáculo não passou disso.
    A plateia, incentivada por um apresentador (dispensável, dado que as transições são feitas pela luz) sem noção da responsabilidade e da postura em palco, adoptou um comportamento desregrado e impróprio para uma sala de espectáculos, enquanto, no palco, os participantes violavam todas as regras de cumprimento obrigatório (entrar e sair fora da sua vez, atravessar o palco em passo descontraído, conversar e compor a roupa em cena, mascar pastilha elástica, espreitar e esperar para entrar à vista do público). A contribuir para a destabilização e impossibilidade de concentração do público não faltaram, na animada “actividade”, as habituais descidas pelo proscénio no decurso do espectáculo e uma câmara da televisão a encandear os espectadores com um potente foco.
    O desconhecimento dos aspectos técnicos resultou num som insuportável e desnivelado, numa iluminação arbitrária de discoteca (laser e efeitos estroboscópicos), sem qualquer justificação artística e numa utilização absolutamente inútil da máquina de fumo, o que revelava demasiado amadorismo para tão pretensiosa produção.
    Ao contrário do anunciado, o espectáculo não incluiu dança contemporânea (enquanto género definido academicamente dentro de correntes estéticas distintas e a partir de características técnicas estritas), nem sequer de dança tradicional (inexplicavelmente distinguida da folclórica), género onde as danças obedecem a padrões etnocoreográficos precisos e são, imperativamente, acompanhadas por instrumentos musicais tradicionais correspondentes, o que não aconteceu.

    Formação e regulação

    Portanto, aconteceu mais uma actividade das tantas caracterizadas pela ausência de qualidade mínima aceitável para serem apresentadas num espectáculo com entradas pagas. O desrespeito absoluto pelos conceitos, terminologia, normas de conduta, conhecimentos técnicos, princípios éticos, entre outros pressupostos fundamentais para a organização de espectáculos de dança (ainda que amadores), confirmou uma incapacidade total e preocupante a exigir uma intervenção urgente.
    Enquanto não frutificar o esforço que o Ministério da Cultura tem vindo a desenvolver, no sentido de enraizar um amplo sistema de formação artística e enquanto não se criarem mecanismos legais para a regulamentação do exercício dos profissionais de dança e respectiva actividade artística, esta situação prevalecerá.
    A insistência nestes mesmos moldes e a irresponsabilidade destes organizadores que parecem dispensar e desprezar a ajuda profissional, continuará a constituir uma desconsideração por um público que merece muito melhor, mantendo-se abertos os caminhos para a agressão contínua e ofensa a todos aqueles que, pautando a sua actividade artística pela dignidade, seriedade, genuinidade e profissionalismo, se vêem impotentes perante tais desonestidades.
    A consciência de que luto praticamente sozinha empunhando como arma de defesa apenas uma experiência de mais de 30 anos como bailarina, professora e coreógrafa, sustentada por uma graduação especializada e reforçada pelo trabalho de investigação, não me impede de alertar e pedir aos agentes culturais e à sociedade em geral um olhar mais atento na gestão deste problema que nos deverá preocupar a todos. Particularmente aos pais, recomendo muita prudência com os professores de dança particulares e “escolas” não reconhecidas, relembrando que é um direito exigir a apresentação dos diplomas. Aos nossos órgãos de informação, permito-me pedir uma maior atenção na selecção de convidados e na condução das entrevistas e dos programas. Dançar-se, sim e sempre! Mas uma coisa é estar-se ligado à dança, gostar-se de dançar, falar-se do grupo que se dirige ou integra; outra coisa, bem diferente, é ter-se autoridade para se falar publicamente desta enquanto disciplina académica e artística, o que só deve acontecer quando o interlocutor está comprovadamente habilitado para o fazer. Caso contrário, pode ser fraude, irresponsabilidade e desinformação.
    Lutemos juntos pela defesa da profissionalização e pela dignidade da dança em Angola.

    (*) Mestre em Performance Artística, Licenciada em Dança com especialização em Pedagogia. Coreógrafa, Bailarina e Professora de Dança. Investigadora.

    in JA

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