A célebre frase do fundador da nação angolana, o Presidente António Agostinho Neto, de que “na Namíbia e na África do Sul está a continuação da nossa luta”, mostra bem a ideia de unidade pela liberdade e desenvolvimento dos povos que compõem hoje a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).
Foi com este pensamento de liberdade que, nos anos 80, Angola acolheu bases de combatentes namibianos e sul-africanos que lutavam contra o regime segregacionista racial do apartheid e pela libertação da Namíbia, respectivamente.
O campo de instrução de Quibaxe, no município dos Dembos, na província do Bengo, foi, em Angola, o mais importante do Congresso Nacional Africano (ANC), formação política que lutou contra o regime de segregação racial na África do Sul.
Localizado no bairro Mata Saúde, a cerca de dez quilómetros da sede municipal dos Dembos, o campo serviu, na década de 80 do século passado, de local de treino para os combatentes sul-africanos. Depois de bem treinados, estes homens regressavam à África do Sul, onde se juntavam a outros “camaradas” para lutarem contra o apartheid.
Hoje, o cenário do antigo campo de instrução do ANC em Quibaxe é desolador. O espaço encontra-se no interior de uma mata, onde abundam frondosas árvores e muito capim, que praticamente engoliu a pequena estátua erigida no local e os oito túmulos dos combatentes sul-africanos tombados durante uma desavença havida entre eles, em 1984. A pequena estátua é uma memória a um dos comandantes (também ele tombado) do referido campo.
Os sul-africanos parece não se terem esquecido do local. Prova disso, é que o Presidente Jacob Zuma, durante a sua visita de Estado a Angola, em 2009, arranjou um espaço na sua agenda para visitar o referido campo, que, para ele, tem um grande significado, devido ao seu contributo na luta contra a segregação racial na África do Sul.
Durante o seu tempo de permanência em Quibaxe, os combatentes sul-africanos mantinham relações estreitas com angolanos que viviam nas redondezas e muitos recebiam assistência num hospital de campanha montado no campo. Os sul-africanos, por sua vez, também eram bem recebidos em casa de angolanos, conforme lembrou Joaquim Mussunda, 56 anos, funcionário da Administração Municipal dos Dembos.
“Convivíamos normalmente com eles e chegávamos a comer juntos, apesar de alguma desconfiança, no início, por parte deles”, afirmou Mussunda, que juntamente com o mais velho Gabriel Armando “Faísca”, do comité municipal do MPLA, foram os nossos guias. Desconfiança de quê? Mussunda esclareceu: “No princípio, eles (sul-africanos) desconfiavam que nem todos os angolanos eram amigos (do MPLA), por isso tinham algumas cautelas no relacionamento”.
Laços de consanguinidade
Mais tarde, as relações foram se estreitando cada vez mais, até que começaram a surgir casos amorosos entre combatentes sul-africanos e mulheres angolanas. É o caso de John Kwalala, enfermeiro de profissão, e da doméstica Maria Domingos, de cuja relação nasceu Teresa Naleite, actualmente com 24 anos de idade e residente algures em Luanda.
“Os militares ficaram por muito tempo e tornámo-nos família. Simpatizei com eles desde o princípio, porque eram bons de relacionamento. Conheci o John Kwalala, juntámo-nos e fizemos uma filha, a Teresa”, recordou Maria, que não se lembra das datas.
A relação decorria às mil maravilhas, até que um dia surge a triste notícia: o tempo de permanência de Kwalala tinha terminado e devia regressar à África do Sul. “Vivemos durante três anos na mesma casa, e quando terminou a missão fiquei sozinha com a minha filha Teresa”, contou.
Dona Maria ficou sozinha mas apenas por um lapso de tempo, que logo surgiu um novo amor. Ironia do destino, ou não, o novo companheiro, Naleite Fula, também ele era um instruendo sul-africano do campo de Quibaxe, que mais tarde veio a ser o comandante do centro de instrução do ANC na comuna do Piri. Da relação nasce um filho, a quem deram o nome de Sipo Naleite, hoje com 22 anos. Quando Sipo ainda gatinhava, o pai teve de abandoná-los para ir continuar a luta em território sul-africano. De lá para cá nunca houve um encontro entre ambos, apenas cartas enviadas por Naleite Fula, manifestando-se disponível para receber o filho.
O encontro afigura-se difícil, uma vez que Sipo e a mãe perderam o endereço do sul-africano. Ainda assim, não perdem a esperança e acreditam no reencontro da família, ainda que seja só para se conhecerem melhor. Os dois buscam formas para o reencontro e já delinearam acções para o conseguir, através de contactos com a Embaixada da África do Sul, em Luanda.
Sipo abandonou a escola o ano passado, por dificuldades financeiras, quando frequentava a 7ª classe. O sustento é garantido pela mãe, que vive da lavra.
Convívio salutar
Adriano Chico, soba do Kipungo, que superintende o bairro da Mata Saúde, tem boas referências da presença dos militares do ANC na região dos Dembos. “Eles estavam aqui dentro da localidade, assim como nas lavras e arredores. Vivíamos sem sobressaltos, com excepção de um ‘incidente’ ocorrido com uma mulher da aldeia, que foi assaltada e morta”, lembrou, com tristeza, a autoridade tradicional.
Sobre o papel e a importância de Angola para a independência da África do Sul, o soba Chico é da opinião que valeu a pena. “Nós estávamos com eles. Eles estavam bem aqui, faziam o seu treino militar que contribuiu para a sua luta pela liberdade e igualdade na África do Sul”, disse.
A mesma opinião é partilhada pelo soberano dos Dembos. O príncipe António Salvador, que completa em Dezembro 78 anos e considera que o apoio de Angola foi fundamental para que o ANC fizesse face ao regime do apartheid. “Foi uma ajuda fundamental.
Eles depois foram-se embora. Mas, o mais importante nisso tudo, é que as relações entre os dois países continuam a ser muito boas”, frisou o soberano dos Dembos, António Salvador.
Fonte: Jornal de Angola