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    Histórias e memórias de António Fonseca

    “Histórias e memórias desancoradas” de António Fonseca são estórias sobre histórias, localizadas em vários momentos diacrónicos das transformações políticas e sociais de Angola, enquanto nação una e indivisível, entendida como um país que se transforma, na essência da sua conflitualidade natural, e se renova através da revalorização positiva do múltiplo e do controverso social.
    A dimensão ficcional das “Histórias e memórias desancoradas” – importa referir que a ficção emerge quanto o autor suspende, intencionalmente, as referências históricas, propriamente ditas, e instaura, no processo de criação textual, a invenção literária – surge como um pretexto a que o autor se socorre para narrar factos reais, muitos dos quais vividos, e transforma histórias em estórias, onde se vislumbram o sonho e as aspirações, muitas delas invariavelmente utópicas, forjadas por muitos jovens angolanos, no dealbar da independência.
    Entendida como intelectualização da memória pela escrita, “Histórias e memórias desancoradas” é uma obra literária em que a substância diegética, ou seja, o desenrolar da acção narrativa, vai contemplando figuras que tipificam comportamentos e atitudes, muitas delas “desancoradas” no passado colonial, desdobrando-se em arautos da liberdade depois da independência de Angola.
    As personagens Félix, Simão, Filó, Luisinho, Zeca, Augusto, Neco, Gabi, Costita, Lito, Pernambuco e Poeta, “um mulato de Calulu, dito Kanga Massa, também conhecido por mulato das pedras e atestado por alguns em momentos de zanga, como tendo sido feito sobre os sacos de fuba, nos fundos de uma loja qualquer do musseque”, são figuras que desfilam ao longo do livro, concomitantemente como personagens e actores sociais, plasmando a escassa temporalidade da acção narrativa.

    Sujeito e história

    O sujeito na história e a história reflectida no sujeito projectam-se nos vários percursos existenciais das personagens, detectáveis ao longo da acção narrativa, numa escrita em que as histórias atravessam várias vidas e cada uma vai reconstruindo um pedaço da história de Angola. Para compreendermos esta relação, ou seja, a do sujeito perante a história, torna-se imperioso prestar atenção na advertência do autor: “Esta é uma estória de ficção, com alguns personagens e factos verdadeiros, num país real, Angola. Qualquer leitura histórica deste livro não constitui responsabilidade do autor.”
    Embora o autor se descarte da responsabilidade de uma eventual “leitura histórica”, a recepção da realidade textual e a intencionalidade submersa na semântica da própria advertência estimulam o contrário, ou seja, convidam o leitor a encontrar nexos da história mais recente de Angola e do percurso biográfico do próprio autor, constituindo um texto que pode ser lido na sua dimensão auto-biográfica. Há uma estreita relação de cumplicidade entre o “mundo empírico”, entenda-se o universo dos referentes reais, e o mundo construído pelo texto literário, ou seja, a substância da textura ficcional.
    Ingressar no funcionalismo público, ou singrar no futebol, era a ambição maior dos membros de uma comissão – criada como referente textual do universo ficcional da narração – que se empenhou na luta anti-colonial.
    Contemplação activa, pelo registo escrito, da história ficcionada e potente rasgo sociológico dos padrões de comportamento de um passado muito recente, “Histórias e memórias desancoradas” é também um espaço de reflexão e tentativa de resposta à interrogativa: Quem são os angolanos?
    Os preceitos da vida religiosa, a torrente social de asfixia perante as desigualdades do sistema colonial, a génese sociológica do tribalismo, com a sua inverdade histórica e demográfica do tipo “mbalu fiel”, e do preconceito racial, entrecruzam-se no plano da história narrada e da estratégia do plano discursivo.

    Colonização e revolução

    Dois eixos fundamentais sustentam, do nosso modesto ponto de vista, a narrativa de António Fonseca: a colonização e a sua face oposta, a revolução, ou seja, o reflexo nas cidades dos efeitos da guerra de libertação, passando pelo “mukuaxi”, no tempo das matrículas das viaturas com as letras AME (Agora Mando Eu), incluindo o período do delírio dos “tiradores” e barris de fino, servido nos “búlgaros” (frascos de compota que, na ausência dos tradicionais copos de vidro, eram reutilizados para servir a cerveja).
    “Histórias e memórias desancoradas” e todas as suas variantes compositivas, sugerem o recurso às teses do estruturalismo genético de Lucien Goldman.

    As teses de Goldman

    Na esteira de Lucien Goldman (1913-1970), sociólogo francês, autor do livro “Pour une sociologie du roman”, “numa obra literária, o autor projectaria a concepção do mundo social a que pertence de um modo simbólico. Encara os grupos sociais como estruturas que têm uma concepção própria, ainda que os seus membros não tenham consciência disso”.
    Para Lucien Goldman, “interessa estudar as condições de gestação e existência do paralelismo entre as características estruturais da obra literária: relações entre personagens, desenvolvimento das intrigas e organização do tempo e do espaço, com a estrutura social de onde a obra emerge, ou seja, conexões entre grupos, desencadeamento de tensões, correlação de factores económicos e ideológicos”.
    O percurso de personagens como o Poeta e o desencadeamento de várias tensões políticas e religiosas, concretizadas, no caso em apreço, na incompatibilidade entre o materialismo ateísta, de inspiração marxista, e a crença em Deus, inspiraram o Poeta a argumentar que, curiosamente, importantes figuras da religião participaram na luta pela independência, citando como exemplo o célebre Cónego Manuel das Neves.

    Realidade e ficção

    A ficção designa uma narrativa imaginária, irreal, das obras de arte criadas a partir da imaginação, em oposição à não-ficção, que constitui uma narrativa factual sobre a realidade. No cinema, a ficção é um género que se opõe ao documentário e surge, no domínio dos estudos literários, contraposta à verdade histórica ou historiográfica. Fundamento estético da escrita literária, a ficção também é sinónimo de poesia e há uma forte dimensão ficcional nos textos poéticos.
    Invenção, obra de fantasia, fabricação fabular, lenda ou mito, o teórico da literatura J. M. de Sousa Nunes entende que “no século XX, a arte ou ‘poética’ da ficção, tem sido objecto de aturada elaboração teórica no âmbito da chamada narratologia e em articulação com a elucidação de tópicos como intriga, construção de personagens, ponto de vista, estilo, voz, corrente de consciência e outros”.

    Narrativa ficcional angolana

    Desde a eclosão da literatura colonial, com momentos de triste memória, passando pela escrita luso-angolana, com Alfredo Troni e o romance “Nga Mutúri”, reflexo da época da imprensa livre, passando pelo período nativista, com Assis Júnior e o seu paradigma literário, “O segredo da Morta”, desdobrando pela obra monumental de Óscar Ribas, com o clássico “Uanga”, a narrativa ficcional angolana teve um percurso com o qual é possível estabelecer sempre um paralelo com a história política de Angola.
    A sociologia da literatura angolana responde, neste atalho de análise, aos pressupostos da política e das limitações impostas pelo sistema colonial, vindo a conhecer momentos de glória com a independência e ressaibos de auto-crítica, com a ressaca da guerrilha em “Maiombe” e a desilusão e utopia, com a “Geração da utopia”, de Pepetela. Neste percurso, de certa forma linear, surge a sátira mordaz, com “Quem me dera ser onda”, de Manuel Rui, uma novela ousada, tanto no plano da história e, fundamentalmente, no plano da opção discursiva.
    Na contemporaneidade, surgem autores como António Fonseca, que retomam o facto político, a emergência das ocorrências e as abruptas transformações sociais, como “leitmotiv” e essência da criação literária.

    Fonte: Jornal de Angola

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