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    É preciso investir na Justiça

    O bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, Inglês Pinto, defendeu, em entrevista ao Jornal de Angola, a necessidade de mais investimentos no sector da Justiça, “para salvaguardar valores e conquistas que os angolanos alcançaram ao longo dos anos com muito sacrifício”.

    Jornal de Angola – Como avalia a criminalidade em Angola?

    Inglês Pinto (IP) – Para fazermos uma abordagem da criminalidade em Angola, temos de analisar o fenómeno no mundo. Os Estados, em princípio, como instrumentos ao serviço das sociedades e dos cidadãos, devem protegê-los de todas as condutas contrárias às normas legais, em especial dos actos que põem em causa valores fundamentais, como a vida, a integridade física e o património legitimamente adquirido. Os Estados devem estudar, analisar, combater e afastar, ou no mínimo, reduzir, as causas que levam as pessoas a assumirem comportamentos desviantes, sancionáveis por disposições penais. Não é apenas um exercício meramente político-jurídico, mas sim uma combinação de politicas sociais, económicas e educativas.

    JA – Qual é o papel que cabe à Polícia?


    IP –
    A Polícia, além de reprimir a criminalidade, que é o seu principal papel, deve exercer uma função pedagógica, no sentido de prevenir o crime. Até porque, quando utiliza mecanismos repressivos, tem que ser dentro dos estritos marcos legais, no respeito pelo disposto na Constituição e na lei, respeitando os direitos dos cidadãos.

    JA – Isso quer dizer que os agentes da ordem cometem excessos?

    IP – O que eu digo é que por vezes, quando se combate um acto violador da lei, pode-se cair na violação de um direito fundamental. É preciso ter em conta que ninguém nasce criminoso e que a responsabilidade da criminalidade, em última instância, é da própria sociedade. De resto, quem faz a condução política da sociedade tem responsabilidades acrescidas no afastamento das causas da criminalidade.

    JA – A criminalidade em Angola é superior à de outros países da região?

    IP – Não obstante o facto de termos ainda problemas económicos e sociais muito graves, pelos dados que nós temos, e fazendo uma relação entre as condições de vida material da maioria da população angolana e a criminalidade, posso dizer que a delinquência no país não é alarmante e pode ser perfeitamente controlada, como tem se verificado nos últimos anos. Isto não quer dizer que não reconheça a gravidade e a devida atenção que devemos dar aos crimes hediondos.

    JA – É a mais baixa da região?

    IP – Não. Não é a mais baixa. Há países com maior estabilidade nesse sentido. O Botswana e a Namíbia são alguns dos exemplos. Há também que ter em atenção a densidade populacional, as realidades sócio-culturais e históricas de cada país. Mas não podemos comparar a situação da criminalidade em Angola com a da África do Sul.

    JA – A África do Sul encabeça a lista de países com maior criminalidade na região?

    IP – Não tenho dados estatísticos actualizados. Sei que há sete ou oito anos, depois da África do Sul, Angola ocupava o segundo lugar no ranking dos países com maior criminalidade na região, por razões objectivas, muitas delas inseridas no quadro dos efeitos da longa guerra civil. Hoje a situação é melhor.

    JA – Qual é o grau de violência que nota na criminalidade em Angola?

    IP – Curiosamente, à medida que diminui o índice de criminalidade no país, aumentam relatos sobre crimes hediondos. Há alguns meses, os meios de comunicação social noticiaram o caso de um pai que matou três filhos em Benguela e, antes mesmo que a sociedade se refizesse do choque, um outro caso horroroso fez notícia: uma senhora foi queimada viva em Cabinda, por alegadas práticas de feitiçaria. Tudo isso é muito chocante.

    JA – E os crimes de colarinho branco?

    IP – À medida que os países vão se desenvolvendo tecnologicamente, os chamados criminosos de colarinho branco utilizam subtilezas tais, que tornam cada vez mais difícil a sua investigação. A não ser que enveredássemos pela inversão do ónus da prova. E entre nós não há este mecanismo e muitos alegam que fere princípios básicos de um Estado de Direito, onde o princípio da presunção da inocência deve prevalecer sobre as suspeições. Enquanto não existir esse mecanismo, a questão do combate ao crime de colarinho branco, no meu entender, vai ficar sempre muito aquém daquilo que a sociedade exige.

    JA – Em que é que consiste a inversão do ónus da prova?

    IP – Em termos simples, a inversão do ónus da prova ocorre quando alguém é acusado de possuir bens, gastar muito para além das suas fontes legítimas e legais de rendimentos, e em consequência disso, é chamado a provar a legalidade e a legitimidade desses bens, em vez do acusador ter que provar os factos que imputa ao acusado.

    JA – Como explica a falta de mecanismos para o combate ao crime de colarinho branco?

    IP – É uma questão de filosofia em termos de políticas criminais, de investigação e do próprio direito em determinados Estados. Em Angola entendo que não existe a falta de mecanismos, pode existir a necessidade do seu aperfeiçoamento.

    JA – A quem cabe a iniciativa de investigar o enriquecimento ilícito?

    IP – À Procuradoria-Geral da República, por exemplo. Sem pôr em causa as liberdades dos cidadãos, os órgãos de Justiça podem fazer um aturado trabalho de investigação para averiguar se determinado património ou parte dele é ou não de proveniência ilícita. Eu creio que alguns processos, de domínio público, em curso em Tribunais do país, tiveram como base a suspeição.

    JA – O princípio da presunção de inocência tem de ser sempre respeitado?

    IP – Exactamente. Por isso é que não podemos fazer julgamentos públicos, antes de averiguar se há ou não indícios suficientes para se passar de um juízo de probabilidade para um juízo de quase certeza.

    JA – Acha que há, entre nós, casos de enriquecimento ilícito?

    IP – Não me compete averiguar esses casos. Há entidades que deviam empenhar-se mais nesse sentido, sem pôr em causa outros direitos dos cidadãos e muitos menos criar um clima generalizado de suspeição, o que é negativo, em termos de harmonia social e desenvolvimento. Porque honestos, felizmente, ainda são a maioria dos cidadãos deste país e deste mundo.

    JA – Como é que avalia o sentimento de segurança do cidadão em Angola?

    IP – Estão a ser feitas muitas coisas que têm estado a resultar na melhoria do sentimento de segurança do cidadão. Mas é preciso investir cada vez mais na Polícia e na administração da Justiça. É preciso, particularmente, facilitar muito mais o acesso do cidadão ao registo de propriedade. Porque, quando as pessoas têm dificuldades de provar legalmente que determinado bem é sua pertença, os seus haveres ficam vulneráveis a apetites de outros.

    JA – A propriedade privada em Angola ainda é insegura?

    IP – De uma maneira geral, ainda é insegura. Mas, os investimentos públicos que estão a ser feitos no sector da Justiça que, quanto a mim, são inquestionáveis, vão fazer com que, a médio prazo, o quadro seja diferente.

    JA – Como bastonário da Ordem dos Advogados de Angola recebe muitas queixas?

    IP – Posso afirmar, sem nenhum medo de errar que, se fizermos agora uma estatística, vamos concluir que a maior parte da população não está satisfeita com o desempenho da administração da Justiça. Não obstante o esforço de muitos magistrados Judiciais e do Ministério Público, de alguns investigadores e de muitos advogados, que estão a dar o seu melhor. A máquina ainda não corresponde às expectativas do cidadão. Temos que trabalhar muito mais nesse sentido.

    JA – São necessárias mudanças profundas?

    IP – Penso que sim, porque a segurança jurídica e o bom funcionamento da administração da Justiça também são condições para a paz social e o desenvolvimento harmonioso das comunidades. Se não fizermos investimentos mais fortes no sector da Justiça vamos pôr em causa valores e conquistas que nós obtivemos com muito sacrifício, incluindo a própria paz. Tudo leva o seu tempo, mas o maior ou menor tempo depende da nossa vontade e determinação, estabelecendo uma justa ordem de prioridades.

    JA – O que pensa da pena de morte?

    IP – Por uma questão de princípios e de valores que hoje defendo e que não defendia há uns 30 anos (eu tenho que ser realista e honesto para comigo próprio), hoje, entendo que a pena de morte é de afastar, embora veja alguma legitimidade nos argumentos que defendem a sua manutenção em alguns países.

    Fonte: JA

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