
Por cada metro da calçada a disputa é selvagem. É um vale tudo repleto de lutas e ameaças em nome do lucro e da sobrevivência. É também uma arena onde, todos os dias, o mais fraco é subjugado pelo mais forte. O comércio de rua não é um crime para aqueles nascidos na economia de sobrevivência, com oportunidades limitadas de educação e capacitação. É, sim, oportunidade de obtenção de renda básica, alimentação e abrigo para famílias.
Fátima Baptista atende uma cliente, junto ao Cine São Paulo, controlando também quem passa, porque muitos fiscais andam à civil. “Temos de controlar porque os fiscais andam à paisana e não conseguimos distinguir. De repente levam o nosso negócio”, disse.
A venda informal nas ruas não é novidade para elas. Precisam, como afirmaram, de pagar a propina dos filhos e as refeições básicas.
Elas disseram à reportagem do Jornal de Angola que “muitos de nós sujamos a cidade e arredores”. Frisaram que muitos fiscais, que têm irmãs, sobrinhas e mesmo esposas a praticar esse tipo de negócio tornaram-se seus amigos e têm sido sensíveis, fazendo um trabalho pedagógico, como, por exemplo, “mamã, não venda aqui. Não faça isso, porque se o meu chefe passar vou ser punido. Compreenda o meu lado”.
Disseram também que há uns tantos “bangões que fazem o que lhes apetece sem terem em conta a nossa situação, tornando-se inimigos de estimação”.
“Às vezes sentimo-nos mal, porque trabalhamos sozinhas, de sol a sol, expostas ao frio, ao calor e mesmo à violência. Mas somos mulheres fortes e perseverantes e se não vendemos hoje, vendemos amanhã”, disse Clara Diogo, vendedora de carne.
Em Maio do ano passado, o vendedor ambulante Pedro Panzo, de 28 anos de idade, que vende calçado e acessórios de telemóveis no passeio, perdeu a mercadoria, no valor de cerca de 30 mil kwanzas. Foi privado da sua mercadoria. Como “um mal nunca vem só”, Pedro Panzo foi detido pelos agentes da Polícia.
Panzo perdeu o seu produto quando se estreava no mercado informal. Mas isso não o fez desistir. A necessidade de garantir o pão de cada dia falou mais alto. No dia 30 de Setembro, a história repetiu-se, com episódios novos e uma particularidade, não foi espancado. “Desta vez, consegui fugir, evitando que me batessem novamente. Só não fui a tempo de levar a minha mercadoria”, disse Panzo.
A vendedora Adriana Sivaya, de 30 anos de idade, teve a sorte de não perder os seus produtos porque os agentes da polícia chegaram dois minutos depois de ter arrumado as suas trouxas e fugido.
“Fugi com o meu negócio”, conta a vendedora, que acrescentou que nem sempre foi assim, porque há um ano e meio que se dedica à comercialização de escovas de dentes, canetas, cotonetes, entre outros produtos, perdendo já por três vezes os seus artigos. Adriana, em meados do ano passado, quando tentou reaver os seus bens, foi detida alguns dias por desacato à autoridade. A segunda situação aconteceu em Abril e a terceira em Agosto de 2011. Ao todo, o prejuízo foi de 50 mil kwanzas, uma quantia importante para a vendedora. “A minha sorte é que eu tinha um cofre de madeira onde depositava algum dinheiro. Quando perdi os meus produtos, abri a caixa e encontrei 30 mil kwanzas, que utilizei para recomeçar o negócio”, disse.
Sérgio Alves, de 25 anos de idade, tem dois filhos e mulher e renda de casa para pagar. No dia 30 de Setembro viveu o pior pesadelo. Há três anos no mercado informal, perdeu por duas vezes os seus produtos, mas nada comparado ao recente acontecimento. Foram-se inúmeros pares de sapatos usados e acessórios de telemóveis.
A acção dos agentes da Polícia custou-lhe o prejuízo de 25 mil kwanzas. Neste momento, Sérgio experimenta a dor do desespero e desabafa: “Agora, não sei o que fazer. Tentamos ganhar a vida de forma honesta e recebemos como recompensa isto.” Estes são alguns dos rostos visíveis do comércio informal que infesta as principais zonas de Luanda.
Sexta-feira
Dezenas de vendedores de rua que perderam os produtos numa operação dos agentes da Polícia Fiscal vivem o mesmo problema. O drama começa por volta das 17 horas, no município do Rangel, próximo dos famosos armazéns das Pedrinhas. A sexta-feira é o dia preferido deles, conforme asseguraram à reportagem do Jornal de Angola.
Os agentes municipais desceram do carro e apanharam desprevenidos muitos vendedores. A missão dos agentes é clara: deixar as ruas e os passeios desocupados pelos comerciantes informais.
Instantes depois, o pânico instalou-se. É o salve-se quem puder. Alguns vendedores procuravam na confusão salvar o seu produto. Outros fugiam. Frutas, roupas, bijutarias, legumes, calçado, acessórios de telemóveis, entre outros produtos espalhados pelo chão. Em cenário de agitação e desespero, ouviam-se gritos por todos os lados.
Adultos e crianças corriam de um lado para o outro. Sentiam-se ameaçados e obrigados a fugir. Os agentes da Polícia são persistentes na perseguição. Os que tinham o azar de ser apanhados recebiam “arrepios”. “O segredo para não ser espancado é não mostrar resistência”, diz Gustavo Jorge, que já foi castigado no passado.
Minutos depois dos agentes deixarem o local, os vendedores regressam. O facto repete-se quase todos os dias.
Problema nacional
Há cada vez mais pessoas a abraçar o sector informal como solução diante da crescente falta de emprego. É falso imaginar que é possível levar todos os vendedores de rua para a economia formal. Os passeios estão a ficar mais apinhados de gente a vender diversos tipos de produtos. Os vendedores informais dão à cidade uma imagem negativa devido ao lixo que acumulam, incomodando as autoridades e a população em geral. O crescimento do fenómeno levanta duas grandes questões. A primeira é: porque preferem eles os passeios? A justificação dos vendedores é a “falta de espaço apropriado para se dedicarem à actividade”. Mas, na verdade, “estar próximo dos potenciais compradores” é a principal razão que os move. A segunda é: o que está por trás da actividade? A explicação óbvia é “falta de emprego” e não necessariamente uma deliberada fuga ao fisco.
Fiscais e polícias
Para os fiscais e polícias os vendedores informais ocupam os passeios, o que os coloca em conflito com os transeuntes. Um exemplo concreto é nas proximidades do mercado São Paulo, nos armazéns da Gajajeira, onde dificilmente automobilistas e até mesmo peões conseguem transitar. O Jornal de Angola constatou que ninguém tem conhecimento do destino dado aos produtos confiscados na rua.
A falta de esclarecimento sobre como os visados podem recuperar os seus produtos deixa espaço para suspeita, como referiram os nossos entrevistados. “Se os agentes da Polícia ou os fiscais têm o dever de impedir que os informais exerçam as suas actividades na via pública, também deviam ter o dever de dizer aos mesmos como proceder para recuperarem as suas mercadorias”, disseram.
Excessos
Paulo de Almeida, segundo comandante da Polícia Nacional, disse que “nós agimos quando existe desordem na via pública. A Polícia, às vezes, faz o papel de outras estruturas, porque andar atrás das zungueiras não é tarefa do polícia. Existe um acomodamento grande no país e que a polícia tem de fazer tudo”, realçou.
O segundo comandante reconheceu que tem havido excesso por parte de certos agentes da corporação, mas também provocações por parte de alguns vendedores informais. “Muitos polícias já foram agredidos e até apedrejados.
E esse é um dos motivos que muitas vezes os leva a agir de forma incorrecta com os vendedores”, disse o segundo comandante, acrescentando que é importante que se faça um trabalho mais educativo junto das populações, no sentido de se evitar esse tipo de constrangimentos para ambas as partes.
Yara Simão
Fonte: Jornal de Angola
Fotografia: Kindala Manuel