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    Cantina nasce no deserto do Namibe

    O antropólogo e professor universitário Samuel Aço durante uma paragem para o almoço com pastores da comuna de Curoca

    A região do Curoca possui uma das mais belas paisagens naturais do deserto do Namibe. Trata-se do Arco do Curoca, uma área preservada pelos habitantes do deserto e que constitui uma imagem digna de ser apreciada e um recanto ímpar para descontrair. No entanto, ainda faltam muitos bens essenciais às populações locais, obrigadas a percorrer dezenas de quilómetros até à cidade do Namibe para conseguir aquilo de que necessitam para a sua sobrevivência.
    Para inverter o quadro, há cerca de um ano que o Centro de Estudos do Deserto (CE.DO) começou a construir uma cantina para atender às necessidades básicas das populações do Curoca. Este facto pode vir a alterar o modus vivendi dos criadores de gado, que passarão assim a usar com mais frequência a moeda nacional para a compra de diversos produtos, evitando a troca de bens essenciais com gado.
    Falando acerca das vantagens do projecto, Samuel Aço, antropólogo e responsável pelo Centro, disse que, em primeiro lugar, a população vai ter a possibilidade de dispor, a qualquer momento, de bens alimentares e outros de uso corrente, sem ter de se deslocar 150 quilómetros, muitas vezes a pé, para adquirir um litro de óleo alimentar ou uma agulha, ou esperar dias inteiros por um comerciante ambulante com pouca comida e muita bebida alcoólica.
    Acrescentou que, com a intermediação do dinheiro no processo de compra e venda será possível parcelar as aquisições segundo o interesse do momento, evitando a obrigatoriedade das compras a grosso por parte dos pastores.
    “Até agora, era difícil estabelecer que percentagem de uma cabra ou de uma ovelha corresponde a um litro de óleo alimentar ou a uma agulha”, disse, para explicar a razão por que a iniciativa corresponde a uma necessidade das comunidades. “Compreendemos esta necessidade há muito tempo, durante a pesquisa etnográfica que levamos a cabo na região, e estamos certos que deverá constituir uma contribuição séria no combate à fome que ciclicamente, em particular nas épocas secas, afecta a região”.

     

    Intervenção social

    O Jornal de Angola apurou que a abertura da cantina faz parte do projecto base de intervenção social do CE.DO, denominado “Identidade, Género e Desenvolvimento”.
    Segundo o antropólogo, inicialmente pensaram em realizar apenas comércio ambulante, que chegaria mais próximo das pessoas, mas perceberam o grau de incerteza que iria gerar, as dificuldades em se saber onde comprar e a imposição momentânea de adquirir algo que se calhar ainda não era necessário no momento.
    Samuel Aço considera que se trata de uma experiência piloto, em particular no que diz respeito à introdução do dinheiro na região – a utilização do kwanza, ou de qualquer outra moeda, não faz parte dos usos e costumes dos pastores – e que talvez possa ser complementada com algum comércio ambulante, caso venham a considerar isso útil.
    Questionado sobre a intervenção que faz no seio das populações, considerou ser uma observação participante, tida pelos antropólogos como o método por excelência da antropologia. “E é o que tenho feito. Inserindo-me nas comunidades, participo das suas vidas, dos seus anseios, entendo as suas preocupações, enfim, contextualizo o meu campo de estudo e dou a conhecer a estas mesmas comunidades o que vou obtendo como aprendizagem”.
    Esta metodologia, acrescentou, consiste em “devolver o que aprendi. Como qualquer aluno, dou a conhecer ao professor (a comunidade) o meu nível de compreensão da matéria”.

    Antropólogo enaltece obra de Ruy Duarte de Carvalho

    O antropólogo considerou, no fim-de-semana, em Luanda, que a obra deixada por Ruy Duarte de Carvalho enobrece a cultura angolana em várias vertentes, como a do cinema, literatura, ensaio e até mesmo artes plásticas.
    Samuel Aço, que também tem vindo a fazer pesquisas no deserto do Namibe, à semelhança do trabalho efectuado naquela região pelo falecido escritor e cineasta Ruy Duarte de Carvalho, fez essa apreciação à margem da homenagem realizada pela Associação Cultural Chá de Caxinde, entre os dias 15 e 18, do mês em curso, no Cine Nacional.
    O antropólogo reconheceu que as investigações de Ruy Duarte são profundas devido à vivência muito longa com os pastores e com o deserto, desde a sua juventude como zootécnico da exploração do Caracul, passando pela muito valiosa produção cinematográfica, até aos seus estudos sobre a região e a cultura Mukubal.
    “A minha participação é de longe muito mais modesta e continua até onde for possível”, disse Samuel Aço, debruçando-se sobre a diferença das investigações feitas às populações do deserto pelos dois antropólogos.
    “Fazemos coisas diferentes, mas com o mesmo objectivo de tornar visível o homem que consegue criar nas mais restritas condições climáticas, valores económicos, sociais e culturais que permanecem impolutos ao desgaste do tempo”, frisou.
    Samuel Aço informou ser difícil escolher outras populações do interior ou litoral do país por estar muito centrado naquela região do deserto e suas comunidades. Porém, reconhece a necessidade de todas as populações e comunidades serem estudadas, variando apenas o grau de inserção do pesquisador nelas.
    O também professor universitário da Faculdade de Letras e Ciências Sociais exortou todos os novos antropólogos angolanos, particularmente os que são formados na Universidade Agostinho Neto, a dedicarem-se à pesquisa científica, preservando para as gerações futuras conhecimentos que estão em vias de desaparecer.
    Samuel Aço tem estado na comuna do Curoca (deserto) há cinco anos, onde instalou o Centro de Estudos do Deserto (CE.DO), mas é de opinião que todo o país é um imenso campo de estudo, dos mais diversificados ramos das ciências. “No que respeita às Ciências Sociais, e em particular à Antropologia, podemos começar na Mutamba, isto é, na baixa de Luanda, e continuar noutras províncias, porque não faltarão motivos de estudo e de intervenção social”, salientou.
    Embora as pesquisas no deserto do Namibe tenham começado na era colonial, no entender do antropólogo as que são efectuadas actualmente vão permitir que haja muito material divulgado para estudo dos académicos e pelos interventores públicos e privados, que por enquanto têm dado os primeiros passos de uma longa caminhada.

    Importância da Antropologia

    O professor universitário frisou que a discussão entre os cultores da antropologia académica, da antropologia aplicada e da antropologia prática é antiga e parece não levar a lado algum.
    Mas, ninguém faz antropologia prática ou aplicada sem possuir o equipamento teórico necessário e obter daí resultados académicos relevantes.
    Na verdade, argumentou Samuel Aço, a antropologia nasceu da necessidade das administrações coloniais aplicarem de forma mais eficaz as suas políticas, no que se considera o pecado mortal da antropologia. Porém, se estes estudos serviram para optimizar a exploração colonial, eles servirão ainda melhor para a consolidação dos valores de identidade por parte das comunidades, para avaliação das melhores vias de desenvolvimento sustentável e como barreira às tentativas de homogeneização (a chamada globalização) social, económica, política e cultural.
    No que diz respeito ao contributo dos membros do CE.DO, que é uma associação de direito angolano e cujos estatutos contemplam tanto a pesquisa científica como a intervenção social, a mesma tem cerca de 90 membros (sócios), na sua maioria pessoas muito sensíveis a estas situações de carência, cuja participação tem sido valiosa. “Pela minha parte apenas me torno mais visível porque estou no deserto com frequência”.

     

     

    Fonte: Jornal de Angola

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