Como encara o surgimento de supostos terapeutas tradicionais que estão a aparecer em diversas publicações em Angola como ‘salvadores’ daqueles que enfrentam vários problemas, incluindo financeiros e sexuais? Parece-me um processo natural, que ocorre em todo o mundo. Por um lado, há grande pressão sobre as pessoas (no trabalho, em casa, nos grupos de amigos) neste mundo de grande competição. Por outro lado, a vida é vivida a um ritmo cada vez mais intenso, o que não favorece e até prejudica a estabilidade emocional das pessoas. Como se isso não bastasse, temos também a actual crise financeira sem precedentes, que (ao que parece) ainda vai no adro. Portanto, o cidadão contemporâneo tem um estilo de vida tão activo e sofre tanta pressão, que precisa de ajuda especializada. Ora, a quem não tem recursos financeiros para essa ajuda especializada sobra o recurso a fontes espirituais. É aqui que enquadro esses a quem chama “terapeutas”, visto que alguns deles (tal como ocorre com pastores) têm noções de psicologia. Mas há também os charlatães, é claro. Aliás, não devemos confundir os verdadeiros terapeutas (que curam e que auxiliam as pessoas) com os charlatães.
E no nosso país? O que acha que está por trás deste ‘boom’ de “terapeutas” tradicionais no nosso país?
No nosso país, temos quatro aspectos a considerar. O primeiro deles foi a guerra prolongada, cujos distúrbios sociais e psicológicos ainda sentiremos fortemente por mais quatro ou cinco décadas. O segundo tem a ver com a forma como se (re) implantou o capitalismo no nosso país – aquilo a que vários analistas chamamos “capitalismo selvagem”.
O terceiro factor está relacionado com os dois anteriores e tem a ver com a forma como se executam as políticas públicas, que faz com que continue a crescer a importância sociológica do sector informal da economia e que encaminha para o emprego precário grandes franjas citadinas. A sociedade urbana angolana é uma sociedade de grande risco. Já viu que uma família da classe média (da média-média), caso o chefe-de-família morra subitamente, o mais provável é que registe uma descida abrupta na escala social? O facto de alguém estar hoje na classe média não o afasta da possibilidade de, amanhã, ser pobre. Ora, isso não é nada vantajoso do ponto de vista psicológico. Por último, temos a questão relacionada com a forte ligação das pessoas aos elementos da cultura tradicional – apesar de haver já uma cultura urbana, a verdade é que ela encerra em si elementos da tradição oriundos do meio rural, com elevada importância para as crenças, para o simbólico, para a espiritualidade. Portanto, a situação sociológica e antropológica que vivemos em Angola é absolutamente propícia ao aparecimento de pessoas com “receitas milagrosas”, que respondem aos sonhos de todos os dias de muitos de nós.
Não estamos perante indivíduos que se querem aproveitar das dificuldades que muitos angolanos passam?
É claro que, sempre que se enfrentam dificuldades em larga escala, surgem aproveitadores. Vejamos uma coisa: num país saído de uma guerra de tão longa duração como é o caso de Angola, era de esperar que (pelo menos durante uns vinte anos) houvesse postos de atendimento psicológico para os cidadãos.
Pensa-se que essa será apenas tarefa do Estado, mas não é apenas o Estado que se deve ocupar disso – os parceiros do Estado, organizações da sociedade civil, devem também ocupar-se desta matéria. Até hoje, há muita gente a viver os traumas da guerra, sem qualquer apoio psicológico. Quem se aproveita dessa situação? São supostos pastores, que conhecem um pouco de psicologia de massas e procuram actuar sobre as massas, tirando daí dividendos fabulosos. Mas são também alguns outros charlatães, como é o caso de supostos terapeutas ou supostos profetas, que utilizam a sua lábia e os recursos disponíveis para amealhar algum dinheiro. Como se sabe, há ervas que curam enfermidades.
Portanto, basta saber o que a erva X cura, que aparecerá depois alguém curado que é utilizado como chamariz – não apenas para cura dessa enfermidade, mas para a suposta cura de quase tudo, como se vê nos anúncios. Aliás, jornal que se preze não devia publicar anúncios desses sem que os autores exibam algum certificado que demonstre todas as competências anunciadas.
Este fenómeno está apenas associado aos países pobres ou acontece inclusive nas sociedades mais desenvolvidas?
Ocorre também em sociedades com menor índice de pobreza.
Já disse no princípio que existem factores que concorrem para isso por quase todo o mundo. E não nos esqueçamos que o ser humano anseia por milagres. O milagre é uma dádiva sempre ansiada, porque cada um quer o melhor para si, até muitas vezes com o menor sacrifício possível. Vou dar um outro exemplo, do sector da educação (que é, a meu ver, dos sectores mais produtivos e mais importantes para nós). Em todo o lado, há alunos e estudantes que anseiam por transitar para o ano seguinte sem o mínimo de esforço.
Mas enquanto este número, lá fora, é normalmente bastante inferior a 10%, por cá chegamos a ter na universidade turmas em que metade dos estudantes querem passar sem esforço. E isso ocorre também nos locais de trabalho, onde boa parte dos trabalhadores quer receber o salário sem esforço, sem trabalho.
Esta é a grande diferença entre nós e os outros. Mas quando me refiro a “outros”, é óbvio que também incluo muitos africanos, que podem e devem servir de referência para nós.
Esta situação é actual ou já existia nas sociedades mais antigas?
Sempre existiu. Mas depende.
Da forma como ocorre hoje, com cada vez maior procura por tais “salvadores”, é um fenómeno novo, que resulta da forte pressão sobre as pessoas que o mundo moderno exerce. Enquanto anteriormente havia terapeutas que eram procurados para tratamento de enfermidades, hoje as enfermidades comuns são tratadas nos serviços de saúde e os tais “salvadores” são procurados para curas milagrosas, para protecção em relação a eventuais males ou no quadro da constante busca pelo sucesso e pelo bem-estar. E quando os serviços de saúde falham, procuram-se os outros. Mas ultimamente, começa-se em cada vez maior grau a recorrer em primeiro lugar ao complemento, ou por falta de confiança no sector da saúde, ou porque as despesas no sector da saúde são muitas vezes insuportáveis. Só que, como diz a sabedoria popular, muitas vezes, “o barato sai caro”.
Por que razão os supostos terapeutas apresentam-se quase sempre como originários de países oeste-africanos e do norte de África?
As sociedades nestas partes do continente africano são dominadas por este tipo de crenças e supostos processos de cura? Não me parece que seja essa a razão. Olhe que, mesmo aqui em Luanda, sempre houve curandeiros.
A diferença deve talvez ter a ver com o facto de que não havia por cá muitos charlatães, até porque charlatão descoberto era praticamente sinónimo de curandeiro sem emprego no espaço em que era conhecido. Hoje, é mais fácil do que antes chegar aqui um charlatão que já foi descoberto num outro país ou em vários outros países. Angola é ponto de refúgio para muitos estrangeiros, sejam eles originários de países africanos, sejam originários da Europa ou da América Latina. Se vêm por exemplo “sapateiros” portugueses trabalhar como técnicos especializados numa qualquer fábrica, por que razão não poderão vir também charlatães oeste-africanos? Podem vir. E vêm, não apenas de Portugal, mas também de alguns países africanos.
Enquanto não houver legislação que preveja essa eventualidade e nos proteja a nós no nosso país, vamos continuar a ser objecto de invasão e a ver os nossos recursos serem em grande medida encaminhados para o estrangeiro.
Como é que a nossa sociedade deve lidar com esta situação, uma vez que existem pessoas que procuram o lucro fácil e outras formas para atingirem os seus fins rapidamente?
É muito complicado uma sociedade como a nossa lidar com esse problema. Já lhe falei de estrangeiros sem preparação que vêm para cá trabalhar. Quem lhes dá emprego são angolanos, não tenhamos a menor dúvida. E olhe, por outro lado, o caso das cantinas que são geridas maioritariamente por estrangeiros, que exportam milhões de dólares por ano. Fazem-no, porque os angolanos lhes dão essa possibilidade. Os angolanos limitam-se às migalhas, limitam-se a alugar-lhes os espaços, para terem um rendimentozinho sem esforço. Olhe, hoje até já se importam babás da China. Não me admiraria se também aparecessem empregados de limpeza europeus ou latinos, em empresas estrangeiras e até empresas angolanas. Portanto, são os angolanos que permitem que haja estrangeiros a ocupar postos de trabalho que deveriam ser ocupados por angolanos. E não se trata apenas de ausência de legislação apropriada por parte do Estado, pois a sociedade poderia organizar-se no sentido de deixar para si esses benefícios.
Se isso acontece havendo recursos, havendo dinheiro que poderia ficar cá em Angola, gerando emprego e riqueza, por que razão não ocorrerá com charlatães que vêm também amealhar a sua parte? Atiram-se as culpas ao Estado, mas a responsabilidade é nossa, é de todos nós.
Algumas igrejas também prometem métodos semelhantes em relação a cura, dinheiro e outros casos. Devemos analisar estes casos de forma isolada ou estamos perante algo semelhante?
O esquema é exactamente o mesmo. Mas atenção, que é preciso diferenciar as Igrejas das denominações religiosas. Uma coisa é a acção espiritual, que é benéfica para o ser humano e contribui para a estabilidade emocional e para a coesão social. Outra coisa é a acção comercial em nome de uma suposta fé, é o enriquecimento em troca de uma acção psicológica sobre as massas e actuando sobre a ingenuidade das pessoas. Não é nada de novo. Basta olharmos para a sociedade como se olha para o mercado, onde funcionam leis de procura e de oferta. Este olhar para a sociedade ajuda-nos a compreender uma série de fenómenos que ocorrem em meio urbano angolano – desde o preço que é atribuído a cada coisa, até ao preço que é atribuído a cada pessoa. Quando uma sociedade atinge um patamar de doença social tão grande como este, é de esperar que surjam vendedores de banha da cobra, charlatães de todo o tipo (até na nossa política os há!), com receitas milagrosas mas olhando apenas para o próprio bolso.
Fonte: OPAÍS