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Domingo, Novembro 3, 2024

A Estratégia do Marcar Passo

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Por: Reginaldo Silva (Jornalista)

Tudo começou numa “provocação” com um daqueles posts que eu gosto de fazer no Facebook, meio a sério, meio a brincar, mas sempre a tentar colocar o dedo na “ferida”, ou seja, a falar do país real com toda a liberdade e frontalidade que o próprio regime democrático permite, promove e protege, que ainda é o mais importante.

De nada adianta termos uma Constituição toda engalanada com direitos/liberdades da última geração, se depois os cidadãos não sabem bem o que vão fazer deles ou com eles.

E quando sabem e os exercitam, acabam sendo acusados de estarem a abusar dos mesmos e às vezes, que é o mais preocupante, até com o recurso a ameaçadoras narrativas, mas que são perfeitamente risíveis, quando não são um verdadeiro atentado à inteligência das pessoas.

De outra forma e sem esta liberdade de expressão, a própria democracia liberal deixaria de fazer sentido.

Estou cada vez mais convencido que o melhor sistema de freios e contra-pesos (checks and balances) começa exactamente no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos por parte dos poderes estabelecidos.

A cidadania sem ser propriamente uma instituição política, acaba por ser o freio mais abrangente em relação a actuação de todos os restantes poderes.

Admito que haja outras “democracias” menos liberais ou mais musculadas/disciplinadas.
Do outro lado da barricada ideológica também já não se pode ignorar que existe agora uma versão mais sinistra da democracia liberal que se pode resumir no binómio fakenews/pós-verdade, onde o que conta é o poder estratégico da narrativa, seja ela qual for.

Os factos ficam para depois.

O que conta agora são as teorias da conspiração.

Os angolanos conhecem bem uma destas “democracias” que foi aquela onde prevalecia a liberdade do “quero, posso e mando”, mas era apenas para um só partido e os seus dirigentes imporem a todo o país a sua vontade e que em vida se chamou “ditadura democrática revolucionária”. Uma vida que se prolongou por cerca de 17 anos.

Na verdade, o espírito desta “democracia” é aquele que continua a mandar no país, embora agora já não seja a do partido único, para ser apenas a de uma tangencial maioria absoluta, numa conjuntura política onde qualquer leitura sociológica mais objectiva que se faça, não tem muitas dúvidas em concluir que Angola vive desde as eleições de 2022 numa situação de empate técnico.

Esta introdução, que até parece uma aula, serve para tentar enquadrar algumas reacções mais musculadas que continuam a andar por aí como foi aquela que se abateu sobre o post referido no início desta crónica e consequentemente sobre o pobre do seu autor, que acabou por levar com uma série de adjectivos menos simpáticos e por tão pouco.

No post e citando uma expressão usada pelo Presidente João Lourenço no seu recente “Discurso sobre o Estado da Nação” que foi “marcar passos” eu fiz a tal provocação que no fundo foi dizer que o Presidente angolano sem querer e como consequência de uma armadilha semântica estava a reconhecer pacificamente aquilo que tem estado a ser acusado pela Oposição, do tipo oração da “mea culpa, mea máxima culpa”.

Marcar passo é andar sem sair de lugar.

Foi este o significado da expressão que eu privilegiei, porque efectivamente é aquele que é mais empregue para quem tem algum domínio da língua portuguesa, embora admita que não haja um erro se dissermos que também pode ser sinónimo de dar passos, de caminhar, restando depois saber exactamente em que direcção e com que intenção o movimento está a ser feito, pois todos sabemos que com a verdade também se engana, sobretudo em política.

João Lourenço disse que o Executivo continuava “a marcar passos para consolidar a governação local, tornando-a mais participativa e conferindo-lhe mais espaço de intervenção”.

Ora o contexto em que a expressão foi usada, o do poder local, é exactamente aquele onde o Executivo mais tem sido acusado pela Oposição (mas não só), de estar a baralhar permanentemente o jogo através de um conjunto de estratagemas, com o único propósito de evitar a criação das autarquias e consequentemente assim conseguir adiar “sine die” a realização das eleições municipais.

A lei que aprovou recentemente a nova Divisão Politico-Administrativa de Angola ao acrescentar cerca de mais 150 municípios aos actuais164 tornou praticamente impossível a realização das eleições locais.

É só fazerem-se as contas/estimativas em relação ao tempo que irá ser preciso a partir do próximo ano tendo em vista a organização mínima destas novas unidades administrativas, para se chegar rapidamente à conclusão sobre a impossibilidade de termos em Angola nos próximos tempos eleições autárquicas.

De facto, está cada vez mais claro que a estratégia do governo é mesmo a de “marcar passo(s)”, entendida aqui a expressão em toda a sua abrangência polissémica.

E mesmo que excluíssemos o primeiro significado que é fingir que se está a andar sem sair do lugar, como fazem os militares na famosa ordem unida em parada, o resultado também não seria muito melhor para a imagem do Governo.

Assim sendo e entendendo apenas “marcar passo(s)” como dar passos em frente, acontece que o movimento da marcha está a ser feito com passos tão pequenos, tão lentos e por vezes tão confusos que efectivamente não acreditamos que haja alguém no Governo que tão cedo se consiga comprometer com algum prazo.

Aqui vem-nos logo à memória a história do “um passo em frente e dois a rectaguarda” que é o título de um livro de Lénine cujo conteúdo já não nos lembramos se é que alguma vez o lemos mesmo.

O exemplo desta recusa já foi assumida pelo próprio João Lourenço tendo sido reiterada agora em sede do Discurso sobre o Estado da Nação que proferiu no passado dia 15 de Outubro.

Para sacudir a água do seu capote, o Presidente passou a usar o argumento da incapacidade do Parlamento em dar conta do recado que é a conclusão do pacote legislativo autárquico, que acaba de receber mais três diplomas (propostas) para serem agendados.

Seja como for e se quisermos falar em prazos, nesta legislatura que termina em 2027 nem com um milagre divino alguém acredita que será possível Angola inaugurar a era do poder autárquico, onde se incluem as pessoas com mais fé na força do além.

Aqui chegados, a pergunta que não quer calar só pode ser uma.

Mas afinal de contas e depois de ter sido o próprio João Lourenço a anunciar em 2018 as eleições autárquicas para 2020, a quê que se ficou a dever esta reviravolta, consubstanciada na actual estratégia do marcar passo?

Uma das respostas que este escriba não tem muitas dificuldades em subscrever está relacionada com a própria transparência do processo eleitoral, num país onde até agora, cinco eleições depois, o principal partido da Oposição nunca reconheceu os resultados apurados pela CNE, mas também nunca deixou de os acatar, em mais um paradoxo da vida política angolana.

As eleições locais vão, certamente, introduzir no panorama político angolano novas referências sobre o comportamento do eleitorado que depois, dificilmente poderão ser ignoradas por ocasião das eleições nacionais.

Resta talvez dizer em jeito de conclusão, especialmente para quem não sabe, que em Angola as eleições autárquicas não são uma opção.

São uma exigência da própria Constituição.

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