Nos dez últimos anos de guerra, Angola viveu numa espécie de dualidade de regime: por um lado havia a guerra civil que opunha um partido na Oposição, armado, e ele próprio duplo, porquanto tinha uma ala desarmada no Parlamento, muitas vezes acutilante, a um governo formado por um partido que tinha dominado o Estado e as instituições por perto de duas décadas. Então, a democracia em Angola nasce de um caldo em que se encontravam um partido dominante que viera, à data da Independência, de uma guerrilha; um rival que continuava em guerra, apesar de ter uma ala civil, dita Renovada; partidos políticos civis e igrejas e sociedade civil mais conscientes e activas.
Trata-se de um caso particular em que os principais protagonistas discutiam e votavam as primeiras leis democráticas no Parlamento, partilhavam lugares no Governo e ao mesmo tempo se enfrentavam mortalmente no campo de batalha. Depois fizeram a paz. A paz surgiu num momento em que tanto a parte vencedora, a governamental, poderia ter seguido até ao aniquilamento do seu oponente, como a parte derrotada poderia ter enveredado num esforço de resistência, suicida, mas que poderia manter focos de instabilidade por mais algum tempo.
Estamos a falar, obviamente, do governo liderado pelo MPLA e da UNITA armada.
E a paz instalou-se em definitivo porque democraticamente as forças armadas obedeceram a uma vontade política. Porque o líder do governo e Chefe de Estado, no espírito deste cargo (o de Chefe do Estado de todos os angolanos) e no da Lei da Amnistia entretanto aprovada, optou pelo caminho da paz que permitiu que a Oposição armada se reencontrasse com a ala desarmada, se reorganizasse politicamente e se integrasse na vida política democrática.
Em dez anos, a memória da guerra é já uma lembrança longínqua para muitos angolanos. A paz está consolidada, a democracia instalada e com ela o combate político. E é isso mesmo que se tem de perceber. No combate político democrático, na luta pelo poder que imana do voto dos cidadãos, não haverá grande espaço para amnistias, nem para gestos de “boa vontade”.
É dessa luta permanente que se faz a democracia, devendo os protagonistas ser inventivos e criativos, mas, sobretudo, capazes de conquistar o eleitorado. Este é o momento que se vive em Angola.
O MPLA é um partido que percebeu há muito tempo que tem de estar permanentemente em campanha para se manter no poder. Na grande maioria do tempo, o MPLA está em ofensiva em termos da luta política. Trata-se de um partido organizado e com liderança. E sabe usar o poder para cimentar a sua coesão.
A Oposição, por seu lado, e em particular a UNITA, o maior partido nessa condição, não só não sabe encontrar a fórmula para manter-se coesa, como não consegue um discurso congregador que arraste o eleitorado. A chave para a manutenção, ou alteração no poder, chama-se esperança, independentemente do estádio de desenvolvimento da sociedade. A questão está em quem a sociedade deposita a sua esperança num futuro melhor. E estamos a falar de um país com mais de 70 partidos e coligações, agora.
Reconhecer que Angola é hoje uma democracia é o ponto de partida para quem queira ter ganhos desta democracia. E é dentro desta democracia que a luta política se tem que fazer com a consciência dos aspectos importantes a ter em conta: estamos também a viver um conflito geracional, encorpado com a influência das novas tecnologias de informação e com os sinais de um mundo cada vez mais globalizado.
E as particularidades da luta política em Angola têm muito a ver com o passado recente de guerra e com as expectativas alimentadas para o dia seguinte.
Todos queremos tudo hoje e já. Porém, o realismo dita que não temos quadros qualificados para fazer tudo, não temos experiência democrática suficiente para realizarmos tudo (estamos em aprendizagem ainda); nem temos formação e vivência democrática para respeitarmos tudo, mormente nos direitos dos outros. A consciência das nossas insuficiências é o melhor caminho para consolidar a democracia, na busca de as ultrapassarmos.
A liberdade de expressão está conseguida, porque a informação circula, pelos jornais, rádios, televisão, redes sociais, e com as pessoas que se “desconfinaram” com o fim da guerra e subsequente abertura à mobilidade. As tentações de controlar a expressão livre são já um esforço cada vez mais inglório, quer pela multiplicidade de meios para a partilha do conhecimento, quer pelas reacções e denúncias sociais em cada caso e quer também pelo repúdio social em cada tentativa. Em democracia, pretender aprisionar a expressão torna-se num jogo em que as paredes se preenchem de buracos até que alguém se afoga.
E é esta liberdade de expressão que, não sendo ela por si realizadora de todos os anseios e direitos, permite a denúncia da não satisfação de outros direitos, quer sociais, quer políticos.
A democracia em Angola é uma realidade que deve ser sabiamente aproveitada para a criação de mecanismos que levem a eliminar males como a corrupção, o atraso no desenvolvimento e os abusos. Se a democracia é constitucional e um facto, consubstanciado na existência de quase uma centena de forças políticas, de um Parlamento funcional e plural e na multiplicidade de órgãos de comunicação social, com as mais díspares formas de relatar o país político, social e económico, é também verdade que a sua afinação levará mais que os dez anos que temos de paz. Sobretudo porque o crescimento da democracia se faz do confronto das visões de diferentes gerações e experiências dentro dos partidos políticos, entre os partidos políticos, dentro da sociedade e na intervenção política da sociedade civil. Estas batalhas serão permanentes enquanto houver democracia, é o que estamos a viver, no princípio ainda. E estes dez anos de paz já nos ensinaram muito.