O Governo lançou sexta-feira, dia 19 de maio, em Luanda, uma consulta pública sobre a versão preliminar da Estratégia de Longo Prazo – Angola 2050. O documento vai ser discutido em vários fóruns em todas as províncias, e o Ministério da Economia e Planeamento convida o sector privado, sociedade civil, meios de comunicação social, corpo diplomático acreditado em Angola e parceiros de desenvolvimento para participar no processo de consulta. As contribuições também podem ser enviadas pelo portal do Ministério da Economia e Planeamento. A consulta termina no dia 12 de junho.
Congratulamo-nos com a iniciativa do Governo de consultar o público e apresentamos aqui o nosso contributo sobre o documento.
Foco certo no Capital Humano
O tema mais importante que retemos do documento, e com o qual concordamos plenamente, é o foco no capital humano. O tema é abordado nas secções diretamente direcionadas para o reforço do capital humano – educação e saúde – e como tema transversal nas restantes secções dedicadas ao desenvolvimento de Angola. Embora tenhamos ficado surpresos com o fato de que dos US$ 948 bilhões necessários para financiar a estratégia, apenas 1% é destinado à educação.
Numa série de artigos publicados no Portal de Angola sob o título geral “A Riqueza das Nações”, já havíamos chamado a atenção para o papel fundamental do capital humano no processo de desenvolvimento sustentável e para a necessidade imperiosa de reforçar o capital humano em Angola para fazer face aos desafios de desenvolvimento do século XXI.
O que pode ser melhorado
I) Quadro estratégico global, continental e regional
Por ser um documento de desenvolvimento de longo prazo, carece de um quadro estratégico para a introdução e tratamento dos diversos temas. Angola faz parte das cinco maiores economias da África Subsaariana e é a segunda maior economia da SADC, depois da África do Sul.
Há apenas uma breve referência à Agenda 2063 da União Africana sem tirar as consequências no desenvolvimento da estratégia.
A questão que se coloca é definir como Angola se projecta no horizonte 2050 a nível global, continental e regional. Quais são as oportunidades e desafios que Angola deve enfrentar em termos de: tensões mundiais entre globalização e regionalização/relocalização; revolução digital; transição climática; criação de uma área de livre comércio no continente africano; o seu papel na SADC.
Como isso afetará a projeção de Angola em 2050?
Lendo o documento, temos a impressão de uma Angola isolada do resto do mundo, de um modelo, e esta é a maior lacuna da estratégia, baseada na substituição de importações.
Se não há a menor margem de dúvida de que a segurança alimentar é um objectivo onde Angola deveria ser auto-suficiente, o mesmo já não acontece noutros sectores da economia angolana.
Caso contrário, como poderá Angola atrair investimento estrangeiro, tema importante do documento, se não olharmos para a balança de pagamentos, nomeadamente as exportações? O capital estrangeiro quer ser renumerado e repatriado. Angola continuará a depender do petróleo para gerar as divisas necessárias para importar bens de capital e repatriar capitais? A estratégia, conforme concebida, criará uma situação insustentável no setor externo. O tratamento do comércio no documento é muito pobre em análise e não permite responder a essas questões.
Actualmente, Angola está ligada às cadeias globais de abastecimento pelas matérias-primas, como é o caso dos países da África Subsariana. O documento defende, com razão, a necessidade de aumentar o valor agregado da produção, mas não traça uma estratégia de como esse aumento será incorporado nas futuras cadeias de abastecimento do comércio exterior nos níveis global, continental e regional.
Como pode Angola implementar uma diplomacia económica activa para aproveitar as oportunidades de aumentar o comércio externo com a Europa, EUA, China, Brasil, outros países e atrair investimento estrangeiro? Como se posicionar no continente africano e na SADC?
Os últimos tempos mostraram que África voltou a estar no centro das atenções no xadrez geopolítico e geoeconómico global que terá um enorme impacto no continente nas próximas décadas. Isto representa oportunidades e desafios que uma estratégia para Angola no horizonte 2050 não pode ignorar.
Acreditamos no potencial de Angola para atrair investimentos estrangeiros e ocupar uma posição de destaque nas cadeias produtivas globais, continentais e regionais, mas a estratégia precisa ser mais elaborada nesse sentido.
II) Agenda 2030 das Nações Unidas e Angola 2050
O documento faz uma breve referência aos compromissos de Angola no quadro da Agenda 2030 das Nações Unidas e para por aí, sem que o leitor seja informado de que Agenda se trata e quais as implicações para Angola.
A Agenda 2030 das Nações Unidas é baseada em 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que cobrem uma ampla gama de áreas com metas definidas para o horizonte de 2030. Embora a Estratégia Angola 2050 tenha um horizonte temporal mais longo, são definidas metas intermédias para 2030, sem que essas metas sejam analisadas à luz dos ODS.
Não se trata apenas de um mero exercício de comparação de dados estatísticos entre as duas agendas.
No Capítulo 8.8 dedicado ao financiamento da Estratégia Angola 2050, a única referência aos ODS é sobre dinheiro móvel “mobile money”.
No entanto, a Agenda 2030 das Nações Unidas também define um quadro de acompanhamento e apoio à implementação dos objetivos (ODS 17) que pode criar sinergias com a Estratégia Angola 2050 e servir também para atrair ajuda externa, empréstimos concessionais e capital privado. O documento Angola 2050 contém apenas uma lista de organizações e instituições internacionais que podem apoiar a Estratégia sem especificar porque razão irão apoiá-la.
É preciso mostrar que a Estratégia Angola 2050 e os compromissos que Angola assumiu no quadro da Agenda 2030 das Nações Unidas são convergentes e fazem parte do mesmo esforço governamental para promover o desenvolvimento sustentável do país.
III) O papel do Estado
Sabe-se que o papel do Estado no desenvolvimento económico tem variado de acordo com os tempos e modelos económicos. As economias modernas são economias mistas – Estado e setor privado – o que muda é mais ou menos Estado. Hoje, o mundo assiste a um aumento do papel do Estado na economia, inclusive nos Estados Unidos e na Europa, como já tivemos a oportunidade de abordar nos nossos artigos sobre “A Riqueza das Nações”.
Mas não se trata de entrar aqui num debate teórico sobre o papel do Estado na economia. O que nos deixou perplexos foi o facto de a Estratégia Angola 2050 preconizar o desengajamento do Estado da economia porque anteriormente, e citamos, “o Estado desencorajava o investimento de longo prazo e de qualidade, colocando a tomada de decisões nas mãos de poucos, criando assim redes invisíveis de influência e maiores riscos de corrupção”.
Parece haver aqui uma confusão séria entre Estado e corrupção. Num Estado Democrático de Direito, consagrado na Constituição de Angola, a corrupção aumenta porque o Estado, nomeadamente o poder Judicial, funciona mal. O que acontecia antes em Angola é que uma única empresa, a SONANGOL, embora pública, tinha mais poderes do que o ministério tutelar e geria a principal riqueza do país, o petróleo, fora do controlo do Ministério das Finanças e outros órgãos do Estado.
É necessário que a Estratégia Angola 2050 aborde o papel do Estado na economia numa outra perspetiva, porque acima de tudo cabe ao Estado enquadrar e dinamizar a atividade económica.
Cabe ao Estado ativar sinergias no triângulo capital humano, emprego e setor privado e criar parcerias público-privadas. É a partir deste enquadramento que será possível determinar em que setores o Estado exercerá apenas o seu papel de regulador da atividade económica ou terá um papel mais interventivo como parceiro ou incentivo através de medidas fiscais.
IV) Agricultura
Vimos reformas em outros países que, ao privilegiar grandes unidades agrícolas, levaram ao aumento da produção agrícola, mas deixaram os camponeses mais pobres ou os empurraram para as cidades.
Embora o documento faça referência a algumas medidas de apoio aos pequenos agricultores, não contém uma forte componente de desenvolvimento rural capaz de responder às necessidades do desenvolvimento dos camponeses. Nesse contexto, um dos grandes desafios é a necessidade de criar fundos adaptados ao crédito agrícola. Na União Europeia, por exemplo, o segundo pilar da política agrícola comum é dedicado ao desenvolvimento rural. Este assunto merece maior atenção e contribuição dos especialistas da área.
V) Transição climática
É preciso melhorar o tratamento das questões relacionadas à ação climática e integrá-las ao corpo do documento. Como já tivemos oportunidade de referir num dos artigos do Portal de Angola, a ação climática deixou de ser um mero catálogo de medidas ad hoc para acalmar a consciência de quem se preocupa com o planeta. Temos de reconhecer que a ação climática, combinada com a revolução digital, são os elementos determinantes que impulsionam a transformação da economia mundial e que irão remodelar o futuro da humanidade.
Os investimentos sectoriais têm de ter em conta a ação climática e o Governo deve acordar com o sector privado um quadro claro de compromissos a nível de ESG (Ecológico, Social, Governo) a serem seguidos pelas empresas. O Investimento sustentável é uma forma de assegurar o equilíbrio entre a necessidade de crescimento económico e a sustentabilidade, sobretudo num contexto de forte crescimento demográfico como em Angola. É também uma forma de promover o contributo e o impacto positivo nas comunidades onde as empresas se inserem, particularmente na exploração mineira. Os fundos internacionais de investimento ESG são cada vez mais importantes e a captação desses fundos constitue uma grande oportunidade para Angola.
Conclusão
A nossa conclusão é que o documento Estratégia de Longo Prazo – Angola 2050 tem o devido enfoque no Capital Humano, num contexto de forte crescimento demográfico. Mas a versão preliminar é mais como um catálogo de iniciativas que carecem de um fio condutor que as articule para criar sinergias e gerar um processo dinâmico. As nossas sugestões vão nessa direção.
Por: José Correia Nunes
Director Executivo do Portal de Angola