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    O que diz a Constituição da República sobre os direitos económicos e sociais dos cidadãos?

    ALVES DA ROCHA Economista e Docente universitário (Foto: Angop)
    ALVES DA ROCHA
    Economista e Docente universitário
    (Foto: Angop)

    Os direitos humanos são, ou não, respeitados em Angola? O relatório da eurodeputada Ana Gomes e a moção de condenação do Parlamento Europeu sobre a violação de alguns direitos humanos internacionalmente aceites e também consagrados na nossa Lei Fundamental originou um coro de protestos seguido de debates televisivos e radiofónicos sobre esta matéria.

    Não pretendo avolumar a discussão sobre o desrespeito de direitos fundamentais como o de manifestação e protesto público, pois, para mim, é no mínimo estranho que só quem apoia o Governo e o MPLA se possa manifestar.

    Mais nenhuma outra organização da sociedade civil consegue cumprir os requisitos legalmente estabelecidos para que os órgãos policiais e de segurança considerem estar reunidas as condições para que livremente e ordeiramente o protesto se efective.

    O propósito desta reflexão é ver se os direitos humanos económicos e sociais estabelecidos na Constituição da República de Angola de 2010 estão a ser respeitados. Provavelmente, mais grave do que o desrespeito pelo direito à manifestação, ao protesto, à expressão pública de desacordos e críticas, seja a não satisfação de certos direitos económicos e sociais absolutamente fundamentais para se poder construir uma sociedade mais inclusiva, igualitária e reconciliada.

    O Artigo 21.º da Constituição da República consagra 17 tarefas fundamentais que o Estado deve, permanentemente, assegurar. O Estado, o Governo e o Partido que politicamente o apoia. Entre elas:

    1) “Promover a erradicação da pobreza.” No relatório do Governo intitulado Objectivos de Desenvolvimento do Milénio – Relatório de Angola 2015 (de 13 de Agosto) reconhece-se que “pela avaliação realizada, duas (2) das vinte (20) metas apresentam uma probabilidade muito alta de serem alcançadas, onze (11) intermédia, três (3) intermédia/baixa e cinco (5) baixa”. Entre as 11 metas com probabilidade intermédia de serem realizadas, encontra-se, justamente, a erradicação da pobreza. A participação dos 20% mais pobres no rendimento ou no consumo apresenta uma probabilidade ínfima de se realizar. Ou seja, reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a percentagem da população cujo rendimento médio é inferior a 1 USD por dia, em paridade do poder de compra, não foi conseguido. Pelo IBEP (2008-2009), cerca de 60% da população tinha um rendimento médio diário inferior a 2 USD. E o acesso a um rendimento médio digno e compensador é um direito humano fundamental.

    2) “Defender a democracia, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos e da sociedade civil na resolução dos problemas nacionais.” É verdade que têm sido promovidas iniciativas visando a participação da sociedade civil na abordagem de alguns problemas, da juventude, do empresariado nacional, do empreendedorismo, etc. Mas, na sua maioria, são restritas aos cidadãos, empresários e empreendedores do MPLA (militantes, simpatizantes e amigos). Porém, o ponto essencial é: Angola é, de facto, uma democracia? Para uma parte dos angolanos não o é, por enquanto. Para o Relatório sobre a Democracia no Mundo da prestigiada revista The Economist, também não. O regime político de Angola é classificado como “autoritário” e a sua posição, entre 2011 e 2014, tem permanecido estável, ocupando o 133.º lugar, num total de 167 países. Portanto, tem de se fazer muito mais para se garantir este direito fundamental – que também é um “bem público” – estabelecido na Constituição da República.

    3) “Promover a melhoria sustentada dos índices de desenvolvimento humano dos angolanos.” O Índice de Desenvolvimento Humano é o melhor e mais usado indicador de progresso das sociedades e das economias. Foi pela primeira vez apresentado pelo PNUD, em 1980, e desde então todos os anos as Nações Unidas elaboram, apresentam e difundem o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano. A metodologia tem vindo, sucessivamente, a ser aperfeiçoada e o âmbito da sua cobertura também. O IDH é um índice compósito com três dimensões: o PIB por habitante, a esperança média de vida e o índice de educação. Portanto, um indicador completo sobre as condições de vida da população. Apesar de o seu valor ter melhorado nos últimos anos, Angola ainda faz parte do grupo de desenvolvimento humano baixo, com um valor de 0,526 em 2013 (149.ª posição entre 177 países). Mas se for retirado deste índice o rendimento por habitante (cujo valor aumenta sobretudo pela influência da exploração do petróleo), o valor do IDH de não rendimento (ou seja, apenas social) cai para 0,4791. Por outro lado, o Fundo Monetário Internacional, ao tratar da questão “traduzir o crescimento do RNB per capita num maior bem-estar” 2 refere expressamente que com base na relação entre as dimensões de rendimento e de não-rendimento do IDH, seria de esperar que Angola tivesse um valor para a dimensão de não-rendimento igual a 0,67; porém, o seu valor é de 0,48, ou seja, um desnível de cerca de 40%. Em síntese, o direito a um desenvolvimento humano integral, previsto na Constituição, não está a ser garantido/respeitado pelo Estado.

    O Artigo 76.º consagra o direito ao trabalho com um “direito e dever de todos”. Ainda que não se disponham, publicamente, de dados sobre a taxa de desemprego, algumas estimativas apontam para um intervalo entre 20% e 25% da população economicamente activa, no mercado formal3.

    Provavelmente, com a consideração da economia informal, onde o mercado de trabalho é extraordinariamente flexível, a taxa de desemprego pode baixar para 12-15%. Ainda assim, um elevado índice de desaproveitamento do mais importante factor de produção da economia – o factor trabalho – e um impedimento sério ao acesso ao rendimento nacional. Correlacionado, está o salário. O capítulo III do Título II da Constituição da República, intitulado “Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais”, é omisso quanto ao direito de o trabalhador auferir um salário digno, adequado à sua produtividade e competência, mas igualmente ajustado à sua dignidade humana. A estrita economicidade da remuneração do trabalho deve ser caldeada pelo direito à dignidade, de trabalhar e auferir uma justa remuneração.

    Segundo as Contas Nacionais, em 2012 – o INE ainda não as actualizou para 2013 e 2014 – o salário médio mensal nacional era de 37.000 Kz, equivalente, à taxa de câmbio desse ano, a cerca de 370 USD. Evidentemente que não é um salário digno. Acrescem as profundas desigualdades sectoriais e regionais (entre Luanda e o interior distam 15 vezes e entre a extracção de petróleo e a agricultura quase 70 vezes). O Governo tem, na verdade, promovido a formação e o aperfeiçoamento técnico e profissional de alguns trabalhadores, como meio para se auferirem salários mais elevados.

    Mas o mercado de trabalho ainda se encontra muito desestruturado e a nova (?) Lei Geral do Trabalho vai agravar a capacidade de se encontrar emprego e auferir um salário digno. A conclusão vai também no mesmo sentido das anteriores: o direito fundamental ao emprego e a um salário digno (que não é, evidentemente, o salário mínimo) não tem tido expressão prática na melhoria dos níveis de vida da população.

    1 – PNUD – Relatório do Desenvolvimento Humano 2014; 2 – Fundo Monetário Internacional – Angola, Temas Seleccionados, Setembro de 2014; 3 – CEIC/UCAN, Relatório Económico 2014. (expansao.ao)

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