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    Sabina e os Manuscritos do Kuito

    Pepetela, a propósito do novo romance de Arnaldo Santos Foto DR
    Pepetela, a propósito do novo romance de Arnaldo Santos
    Foto DR

    Este último romance de Arnaldo Santos, Sabina e os Manuscritos do Kuito, vai certamente confundir à primeira vista alguns leitores, por aparentemente fugir à temática e forma que tem usado até agora. Embora, se quisermos prestar atenção ao seu percurso de escritor, não haverá de facto razão para admirações. Neste livro, Arnaldo Santos trata assuntos sérios, tão sérios como a morte ou como o que fica para lá dela, e isso é assunto sério mesmo. E trata com delicadeza, embora os mais distraídos vejam apenas ironia, ligeireza.

    Porque ele usa a ligeireza como um disfarce, espécie de manto protector, uma segunda linguagem que precisa ser decifrada. E que o assunto é sério demais já vamos ver, pois se trata do nosso passado recente.

    Em 1992 houve as primeiras eleições em Angola, e, como todos sabem, apesar de tantas interferências, umas bem intencionadas mas impotents e outras absolutamente malévolas mas eficazes pela muita experiência de manipulação adquirida em outras partes do mundo, o resultado das eleições foi repudiado por um dos partidos com secretos apoiantes poderosos e a guerra civil retomou e se tornou mais mortífera do que nunca. Não se puderam contra os mortos, nunca se terá uma estatística segura, mas foram muitos, demais. E uma das províncias que mais sofreu foi o Bié, exactamente de onde saiu o senhor da guerra que queria repor a verdade das eleições, como dizia, e se fala no livro. Foi no Bié que se assistiu ao cerco dos nove meses, o terrível bombardeamento da sua capital, transformada num monte de escombros e horror num nunca mais acabar de tempo atrás de tempo. Nove meses.

    Sabina arnaldo santosA população do Kuito, cercada, apenas com o apoio das forças armadas ainda em processo de formação, sedeadas no Kunje e em poucos bairros da cidade, sofreu não só os bombardeamentos e os tiros dos snippers (ou fagulhadores, como aqui se apresenta), como a mais tremenda fome, obrigada a comer tudo o que mexia, até não haver mais nada vivo, nem cão nem gato nem rato nem barata, a fazer sopa de folhas de mamoeiro, até todos os mamoeiros desaparecerem, a inventar raízes onde já nem as raízes se escondiam, a arriscar todos os dias a vida para procurar um pouco de água. Pior de tudo, talvez (e digo talvez porque é impossível adivinhar o que é pior em tanto sofrimento e desespero) enterrar os familiares mortos nos quintais e depois nas ruas e em qualquer sítio onde se podia enterrar alguém, mesmo precariamente.

    E conviver com os seus mortos, sepultados no meio dos bombardeamentos, às pressas, apenas para os esconderem dos olhos dos viventes. Famílias inteiras liquidadas, um a um, até o último ficar insepulto, por não encontrar coveiro. Não é fácil imaginar isto, nunca o foi, e durante meses seguimos a tragédia pela voz de um herói da Rádio Nacional, que é muito justamente referido no livro. Também, como Arnaldo Santos diz no romance, “o morticínio do Kuito, a que os defensores dos direitos humanos tinham assistido de camarote sem mexer uma palha…” Sim, o mundo assistiu, uma ou outra figura pública lamentou mais ou menos hipocritamente, depois olhou para o lado, pois os sitiados pertenciam à maioria que devia perder se não as eleições e a razão, pelo menos a guerra, para que as suas teorias vingativas e ambições se realizassem. Azar, as previsões falharam, antes e depois. E sempre. Ficaram os chamados danos colaterais, milhares e milhares de crianças desventradas, a pesar nas consciências.

    Terminada a guerra, em 2002, dez anos depois de começar a chacina do Kuito, procedeuse à remoção dos cadáveres sepultados em todo o lado para lhes dar um enterro condigno. É à volta desse trabalho de remoção e sepultura que este livro vai tecendo a sua teia de mistérios e explicações.

    É criada uma comissão para organizar a tarefa. É verdade, temos a mania de criar comissões quando queremos atirar os problemas para baixo do tapete e depois esquecemos os seus resultados ou sugestões. No entanto, naquelas circunstâncias, dada a delicadeza do assunto, havia que juntar diferentes cabeças, experiências e sensibilidades, pois se tratava com os corpos dos falecidos mas também com as dores dos sobreviventes. E, ao serem confrontados com o início dos trabalhos, factos estranhos começam a acontecer, melhor dizendo, continuaram a acontecer, pois desde 1992 nunca pararam de existir coisas e comportamentos para lá do entendimento humano. Obviamente, não os vou aqui desvendar, porque seria tirar ao leitor o prazer da descoberta.

    Direi apenas que Arnaldo Santos cria um ambiente de sombras onde os vivos se distinguem com alguma dificuldade dos não-viventes, ou talvez sejam as vontades ignoradas dos não-viventes que conduzem a acção, com vozes que se levantam da poeira para vituperar uns e outros, para dar conselhos que nós, os viventes, não seguimos, pois somos demasiado humanos para os entender. O jogo das personagens ambíguas permite ir revisitar todo o horror que a população sofreu só porque fez determinado partido ganhar as eleições na cidade-símbolo.

    “Sabina e os Manuscritos do Kuíto” trata portanto de explicar o que se passou na cidade durante os nove meses de cerco, a partir dos olhos das vítimas, sobretudo das mulheres, sem se deter muito nos gestos de verdadeiro heroísmo consumado todos os dias nos mais pequenos gestos de viver, sem grandes descrições guerreiras, porque esse não era o objectivo, sem grandes elucubrações políticas, apenas o essencial para a compreensão do passado tão próximo e que se começa a esfumar das memórias.

    O livro aí está para que esse esquecimento nunca aconteça.

    Como não podia deixar de ser, há sempre alguém que se aproveita das falhas dos sistemas ou das distracções dos outros nas mais inusitadas situações. Também aconteceu no processo de remoção das ossadas. Por exemplo, trabalhadores que desaparecem do trabalho mas cujos nomes não desaparecem das folhas de salários.

    O financeiro fica obviamente com os pagamentos não efectuados. Um detalhe apenas mas para dizer que mesmo em operações complicadas e extremamente delicadas, por mexer muito com a subjectividade e a memória dolorosa das pessoas, há sempre uns vivaços à espreita de ocasião.

    De notar que, se bem que os personagens principais pareçam ser os homens, dois dos quais são até antigos militares, um engenheiro e outro escritor, de facto o que faz mover a acção aparece normalmente por via das mulheres, ou de figuras femininas, sejam existents ou não, o que deixa de ser importante, pois o Kuíto mostrou que nunca mais ninguém poderá viver ou pensar ou sentir da mesma maneira.

    E por isso de repente estamos a ansiar por uma Sabina de sombras e todos os mistérios, uma Sabina-Mãe Terra.

    Suponho ter sido essa a intenção do autor, mas nem ouso perguntar por ela, aquela razão que nunca se desvenda, porque está para além da vontade do escritor, estonteado pela vertigem da criação. Repito, ninguém que conheceu, mesmo indirectamente, aqueles mambos poderá viver ou pensar ou sentir da mesma maneira depois do cerco do Kuito. Há quem afirme que muita sorte tiveram os que ficaram cacimbados para sempre, porque fugiram assim do pesadelo em que sepultaram as almas, deixando livres os espíritos dos mortos inocentes.

    Eles, no entanto, estarão sempre nas páginas da História de Angola, a História dos povos, sejam vitoriosos ou não.

    Que cada leitor tire as suas ilações e encontre uma lição de vida. Pois este livro de Arnaldo Santos apresenta, felizmente, muitas leituras possíveis. Assim é a literatura.

    PEPETELA  (CULTURA, jornal angolano de artes & letras)

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