
Sempre o disse em surdina, mas agora revelo-o à boca cheia: o Manuel Rui é o maior griô da banda. Conta descontando falas na boca do povo. No mês de Abril, colocou na zunga Kitandeiras e Aviões numa única bacia cheia de novas palavras antigas. E o que parece escrito é masé falado no papel, as palavras montam o filme, a rua vem a rodar na câmara dos nossos olhos, se projecta no próprio real, mas no fundo é ficção, é imaginário, é invenção da nua verdade.
M. Rui nos oferece a sua mais recente bacia de palavras: KITANDEIRAS E AVIÕES.
Kitandeiras essas que são do M. Rui e aviões tais que não pertencem ao M. Rui. As kitandeiras até nem são do M. Rui, as kitandeiras são o M. Rui, ele ainda.
Estão dentro do espírito dele, de tal modo que ele as xinguila na sua prosa, mas este xinguilamento não é de agora, já o vi em anos recuados, por exemplo, no conto Mana Parabólica e nas crónicas da Maninha.

Foto “50”-JA
Nestas seis estórias: Cem Metros, O terreno, O Preço e ÅĹ bom, pai!, O Vietcamba, Sábado e Os pés e os Sapatos vemos como, para tecer essa arte de bem escrever, o autor convive com esses personagens, para poder captar-lhes as nuances, reforçar-lhes as identidades, ou criticar-lhes o comportamento burguês.
III. Realismo feiticista
Dentro de uma perspectiva utilitarista e hedonista que é o prazer de ler e viver a narrativa, como no cinema, a minha condição de poeta impera e realizo uma abordagem com sentido artístico, uma possível fuga aos critérios da teoria geral da literatura. Nestes seis contos de Kitandeiras e Aviões, de M. Rui, tratase ainda da invenção (feiticista) do real (vejam que eu, longe dos meandros da teoria da Literatura, não falo da clássica recriação literária, mas da invenção do próprio real, coisa que só os feiticeiros da palavra conseguem).
Todo este exercício provém do propósito de dar continuidade a uma literatura africana autóctone, na linha dos mestres que nos antecederam, como Chinua Achebe, Amadou Kourouma, António de Assis Júnior, Agostinho Neto, Luandino Vieira, Óscar Ribas e outros.

Manuel Rui recorre a um realismo mágico de cariz natural inserido na normal factualidade da narrativa. Aqui deparamos com um Manuel Rui embarcando genialmente, qual griô pós-tradicional, na narração de estórias inverosímeis ao nosso entendimento materialista do mundo, mas capazes de fascinar as nossas almas sedentas de sonho e imaginação.
De referir a fluidez e o paroxismo do estilo de lava quente e de água do mar de Kitandeiras e Aviões, que ora arde em sarcasmos mordazes, ora se evapora em doce maresia com descrições do ambiente e cenas de volúpia e de solidariedade humana. Manuel Rui, no dizer de Marta de Oliveira, “opta por uma estrutura narrativa simples e atraente, escrevendo no registo da oralidade quotidiana.
(…) Um dos elementos que contri buem para emprestar ao estilo de Manuel Rui a sua modernidade e intemporalidade é, sem dúvida, a sua re¬lação com a lingual falada, tanto no vocabulário como na sintaxe.”
A este processo, a autora em referência chama de “coloquialismo” que permite “um melhor enquadramento da realidade descrita no cenário da rua e do quotidiano”.
Este elemento chamado coloquialismo, uma invenção do português angolanizado (linguagem popular) traz uma intencionalidade subjacente que é a de consolidar uma literatura angolana autóctone. Temos aqui, portanto, nesta técnica narrativa do realismo feiticista os seus fundamentos
tele-axiológicos, na identidade cultural da narrativa e no seu discurso.
E constatamos, por isso, que a prosa destes missossos axiluandas é, como sempre, escrita com tal paixão que as palavras se arrumam como quem arruma frutas nas bacias sobre o passeio. Cheira-se-lhes o aroma, vê-se-lhes a cor, apalpa-se essas frutas no pregão das quitandeiras que se transfigura do lídimo pregão para o andamento cadenciado e itinerante do discurso narrativo. Luanda é Hollywood, madeira sagrada onde o povo (quitandeiras, zungueiro(a)s e kinguilas) se purifica crucificado a um destino “normalizado” pelo acontecer do Estado-Nação.
“Segunda-feira não era dia de bom negócio, chegavam mais tarde e contavam, umas para as outras, coisas do fim-de-semana.
Ainda as que haviam feito sábado e manhã de domingo narravam do negócio nesse tempo e, por isso, confirmava-se que a polícia também relaxava um pouquinho, a s vezes, avisadas por telefonema ou candengagem, já escon- didas em quintais, viam o carro da polícia passar rápido e os agentes, como dizia Dina, “com cara de segunda-feira,” e Zulmira interferia, qual cara de segunda- feira, as mulheres deles não prestam, só dão no fim-de- semana, se fossem como eu, todos os dias, eles não tinham força para correr,” e Nana dava um acrescento,“ por isso é que você anda devagar de cansada da cama e foi agarrada, ai meu Deus! Ah! Ah! Ah! Ah! Tenho de ir a televisão representar nas Conversas no Quintal ou lá que é!” (Cem Metros)
Kitandeiras & Aviões é o mesmo Manuel Rui (MR) da gozação de sempre, com o sol a lhe brilhar nos olhos cortantes e a reluzir nos pelos da barba hochimínica, em permanente vigília popular. MR escreve asfalbetizada prosa entre a avenida engarrafada e o passeio esburocratizado.
“… as quitandeiras avaliaram a situação, os engarrafamentos tinham aumentado porque os chineses haviam colocado uns marcos sinalizadores, listados na vertical a vermelho e branco que eram deslocados quando os trabalhadores precisavam de atravessar qualquer dos lados da avenida, isso ia dificultar o trabalho da polícia,…”
(Cem Metros)
Os dedos do poeta continuam a debitar no papel uma farra literária com mufete de palavras a convidar o leitor para a esteira onde o próprio MR está sentado de sandálias nos pés e boné na cabeça. Com ele vem sempre a candengagem, esses piôs que fazem a alegria da nação, na sua palavra de sonhar ser grande.

Emociona o jeito com que M. Rui termina as suas estórias, como aquela do Quem me dera ser onda, sempre no seu jeito poético, de nos manter colados à narrativa, a imaginar a marcha atrás até ao infinito das palavras.
O resto do povo enche o quintal, lhe chama “Pai, poeta “. Este “povo (que) se acrescentou na gozação”. O mufete tem condimento de jindungo caombo: guerra de policies contra a zunga, nota saliente desta Luanda que desfila assaltos a bancos, sábado mágico, som altissonante das farras, geradores, banquete de festas, esquemas, fofocas, vietcambas e chineses do internacionalismo proletário, as mulheres mães deste mundo e o mar, o eterno mar que enche a alma de evasões. Falas de uma cidade camponesa, onde Cem Metros é heroína zungueira que amarra o polícia jovem pelas artérias do coração.
“O polícia levantou-se e, de novo, consultou o relógio. Ela insistiu: “Porquê?” “Porque gosto de ti.”
“Ai meu Deus! Nunca pensei que um
polícia me gostasse.Até que estou atrapalhada.”
“Atrapalhada mais porquê?”
“Porque também gosto de ti! ah! Ah! Ah!”
Ligou o celular, “tia Sara, de mim? Pois. Campeão de atletismo na policia, tia. Está aqui e afinal é um candidato para, só um minuto, tia,” e virou-se para o polícia:
“É para casar na igreja?”
Ele estava cabisbaixo a olhar para o relógio.
“E as alianças, como é? Ah! Ah! Ah! Ah!”
Ele abriu uma ausência nos braços sem levantar a cabeça.
“É, tia, para casar na igreja, desculpe, madrinha, xau. Porque é que você está a chorar? Vejam só! Agora é que as minhas colegas vão me chamar pior que mentirosa mas maluca. Um polícia a chorar? Valha-me Nossa Senhora do Cabo!” (Cem Metros)
E aqui apetece ao leitor imaginar outro conto, dar continuidade à estória inventada pelo escritor. Depois de casados, como iriam conviver o polícia e a kitandeira chamada Cem Metros?
Futungo de Belas, 17 de Abril de 2013
José Luís Mendonça (CULTURA, jornal angolano de Artes & Letras)