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    Postal de Lisboa: absurdo registo criminal para nacionalidade portuguesa

    Otília Leitão
    Otília Leitão

    Maria nasceu em Oeiras há 31 anos. Profissional de hotelaria, filha de cabo-verdianos, vive com cartão de residência permanente em Portugal e manifesta profunda revolta porque lhe é exigido para obter a nacionalidade portuguesa, um certificado de registo criminal de Cabo Verde, país que apenas conhece em sentido cultural/virtual (até participa num grupo de dança de batuco).

    Do mesmo modo se indigna quando lhe exigem 200 euros de custos da papelada. “Mas porquê, se nasci em Portugal? Que sentido faz um registo criminal se nunca fui a Cabo Verde?”. De Cabo Verde também não consegue passaporte cabo-verdiano, sob a alegação de que não efectuou o registo de inscrição. Jamila, de Santiago, jovem a educar quatro filhos, vive com cartão de residência permanente há treze anos, mas a sua mãe, também de Santiago, tem nacionalidade portuguesa.

    Samuel está em Portugal há seis anos sem documentação, apesar de já ter trabalhado e descontado. Chamo a estes casos e muitos outros idênticos “despojos das alterações de leis” (jus sanguínis / jus solis), acrescidos de um défice de conhecimento e um certo “deixa andar” a que, pelo prejuízo que agora sofrem, urge resolver com o empenho das autoridades dos dois Estados e das associações, sobretudo quando o Estado português, acabou de estreitar os requisitos para obtenção da nacionalidade.  

    Concordo com a crítica de que, com desigualdade de direitos humanos não se poderá falar de cidadania lusófona, conforme notou a investigadora e jornalista Diana Andringa, no recente I Congresso sobre o tema.

    Os casos acima referidos, cuja identificação é feita recorrendo a nomes fictícios, por respeito pelos próprios, tornam-se aberrantes, neste século (XXI) que se pretende seja da cidadania e que respeite a plurinacionalidade.

    Estas pessoas vivem num emaranhado de limitações, imposto pela burocracia institucional, notória falta de literacia, inércia ou a ausência de motivos que as leve a informar-se sobre o regime legal e suas vantagens do país de acolhimento.

    A nacionalidade, cujos requisitos e formalidades podemos encontrar, via Internet, é importante pela titularidade de direitos políticos, acesso às funções públicas, plenitude dos direitos privados e profissionais, ou impossibilidade de extradição ou expulsão, uma tendência do nosso tempo plurinacional ou “desnacionalizado”, como diria o destacado professor de Direito, Gomes Canotilho. A propósito do conceito do direito de cidadania, diz que esta é concedida a um estrangeiro gradualmente, o estatuto de membro da República portuguesa, com preservação dos princípios da igualdade e da não discriminação.

    No caso de Maria, a situação torna-se caricata, porquanto, tendo nascido, assim como outros seis irmãos em Portugal, tem, neste agregado, uns de nacionalidade portuguesa e outros de nacionalidade cabo-verdiana.

    Inconformada, desabafa, “o cartão de residência que tem nacionalidade cabo-verdiana com naturalidade de Portugal, não me dá direito ao passaporte cabo-verdiano. Na Embaixada disseram-me que era necessário um registo de inscrição prévia, o que também custa dinheiro e leva pelo menos um ano”. Contudo, possui carta de condução, cartão da escola secundária e cartão de saúde.

    A ambiguidade da sua situação, que actualmente, sendo maior não se enquadra em nenhum dos itens referidos pela lei da nacionalidade portuguesa de 2006, tem impedido Maria de prosseguir os seus estudos, prejudicando-a também quanto a eventuais objectivos de saída de Portugal para outros países da Europa.

    O Tratado de Maastricht (1992), que instituiu a União Europeia, consagrou a cidadania da União a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro, ou seja, uma pessoa com nacionalidade portuguesa passa a ser automaticamente um cidadão da União Europeia, com todos os direitos, privilégios e deveres que tal implica.

    A incoerência quanto à Embaixada de Cabo Verde, prende-se com o facto de, alegadamente, ter sido concedido renovação de passaporte cabo-verdiano a duas das suas irmãs, bailarinas, e que também não fizeram registo, conta Maria, que já clamou sobre a sua situação em vários fóruns e alerta que existem muitos jovens assim, ou seja, tendo nascido em Portugal não conseguem obter a nacionalidade portuguesa.

    Os seus pais, naturais de Santo Antão, estão em Portugal desde há muito, mas continuam cabo-verdianos. O pai, que não sabe ler, teve até aos anos 90 o “cartão azul”, de BI de português da antiga colónia, e agora é estrangeiro com cartão de residente.

    No caso de Jamila, com menos de 30 anos, possui cartão de residência, mas a sua precariedade social, originou a que as autoridades portuguesas lhe tivessem retirado um filho, em idade escolar infantil. O drama está a ser resolvido pela avó, que se vai responsabilizar pela educação da criança. O Samuel, tem 36 anos e está em Lisboa há seis. Desempregado, já fez descontos mas continua irregular, admitindo algum desleixo da sua parte em tratar da regularização. Tem dificuldade em arranjar emprego e patrão que lhe faça contrato. A partir daqui todo o processo de vivência fica contaminado.

    Estes casos, que segundo os próprios, são a ponta de um iceberg, revelam falta de conhecimento, ausência de acompanhamento, estímulo a uma mudança de vida.

    Por isso, estou com a contundente crítica de que não há sentido de lusofonia, quando o Brasil permite a morte de adolescentes, a tiro, perante o olhar impassível da polícia e em Portugal se permite a perseguição a jovens de origem africana, em bairros problemáticos.

    E a propósito deste congresso – que reuniu relevantes personalidades da sociedade civil, de um estrato etárito maioritariamente sénior, promovido pelo MIL (Movimento Internacional Lusófono) registado que com mais de 20 mil adesões do chamado “espaço lusófono”, e que defende o reforço dos laços cultural, social, económico e político, procurando cumprir o sonho de Agostinho da Silva, ou seja, a criação de uma verdadeira comunidade lusófona, numa base de liberdade e fraternidade.

    Um dos ausentes nos trabalhos do congresso foi Pedro Pires, o antigo presidente de Cabo Verde, previsto como orador, que justificou a sua ausência com uma nota pública. Em contrapartida a associação cabo-verdiana ignorou o convite.

    Valeu à organização colmatar as faltas deste país de língua comum, com a presença de Celina Pereira, que, no segundo dia, no painel subordinado ao tema Cidadania Lusofona: uma utopia?”, respondeu com a declamação de um poema de Onésimo Silveira – “Poema Diferente”, – aliás muito oportuno, no sentido de que os povos querem a sua autonomia e desenvolvimento da sua cultura. A artista cabo-verdiana, acabou por ser convidada a integrar o MIL como cidadã honorária.

    Também a coordenadora do PAICV em Portugal, Madalena Semedo, aproveitou o congresso para, enquanto cidadã, apelar à necessidade de mais envolvimento da sociedade civil, “mais cedências”, para a solidariedade aos carenciados e desenvolvimento das comunidades de povos da CPLP, realçando as nuances culturais que também trazem enriquecimento à lusofonia.

    PS:

    O filme/documentário cabo-verdiano “Dona Tututa”, realizado por João Alves da Veiga e que integrou o FestIn 2013, no cinema S. Jorge, (80 filmes, provenientes de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, Portugal e São Tomé e Príncipe), de que Antónia Pimentel é membro do júri, foi espectacular não só por mostrar uma pianista extraordinária, uma mulher de fibra, Epifânia Évora, mas também por apresentar depoimentos de um espectro alargado de artistas de voz e instrumentistas, que têm acompanhado a artista de 94 anos em palcos nacionais e internacionais.

    Desse talento, que brotou num período da História em que se exigia à mulher um certo recato em relação aos homens, dá conta que o presidente Aristides Pereira, que em vida deixou o seu testemunho sobre a singular pianista, cujo dom se evidenciou logo aos quatro anos, quando tocava as teclas e batia palmas a si própria imaginando um público presente. O documentário trouxe à ribalta várias gerações de artistas que, por sua vez, citaram outros. Bana, Cesária, Morgadinho, Malaquias, Tito Paris, Celina Pereira, Bau, Mayra Andrade, etc, foram alguns dos muitos depoentes juntamente com os filhos de Tututa, num país onde a música é o principal cartão de visita. A sala estava composta, numa segunda-feira à noite, e, no final, várias opiniões foram unânimes quanto à contagiante personalidade da pianista, a importante recolha de autores e até um enquadramento na simbologia sofredora de um povo que brilha na aridez da terra vulcânica. Um bom trabalho!

    otilia.leitao@gmail.com (www.asemana.publ.cv)

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