Crítico de arte, investigador e um dos curadores da mostra de Belas Artes patente no pavilhão de Angola na Expo Yeosu, Filipe Artur Vidal é um dos nomes destacados das artes plásticas nacionais. Para o artista, a passagem de testemunho, que hoje já se faz sentir, deve ser acompanhada de uma maior entrega dos autores e das instituições ligadas às artes plásticas. O Jornal de Angola conversou com o artista na Coreia do Sul.
Jornal de Angola – Na qualidade de crítico de arte e historiador como analisa a arte angolana actualmente?
Filipe Artur Vidal – A arte angolana, como em todas as partes do Mundo, tem mostrado uma certa evolução. Não só nas tendências estilísticas, como também na performance de cada artista. Temos hoje em Angola uma escola de arte e embora se diga que lá não se criam artistas (o que de certa forma eu concordo), formam-se técnicos de arte, que vão tendo a responsabilidade de assumir esta veia artística, fazendo trabalhos magníficos.
JA – Como se observam estas mudanças?
FAV – Para sentirmos estas mudanças, temos, em primeiro lugar, de organizar a arte angolana, a partir de três estágios: um antes da independência, um de pré-independência, onde começam a sobressair nomes como Viteix, António Ole e Bastos Galiano, e o período que inicia com a independência, que considero a época romântica da arte angolana, onde começa uma pintura revolucionária. Com a mudança político-social da época, de mono-partidarismo para a democracia e o surgimento da chamada economia de mercado, vamos encontrar também uma outra forma de fazer arte. Começam a surgir prémios como o Ensarte e de outras iniciativas, assim como tentativas de criar ateliers colectivos. Os artistas começam a fazer a sua arte de forma mais livre.
JA – O que caracteriza este período e porque o vê como a fase romântica das artes plásticas angolanas?
FAV – Este período surge, sobretudo, com a fundação da União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP), onde vários artistas se destacaram no processo de independência do país. Naquela época, após o deflagrar da guerra civil, começou a surgir um espírito de patriotismo. Se bem me lembro, havia na época um slogan que dizia: “estudar é um dever revolucionário”. Portanto, as artes plásticas com cariz revolucionário incentivavam a liberdade recém conquistada. Nessa época vemos obras, como a de Filipe Salvador, na altura no Brasil, que ilustrava um batuque e duas hastes, numa das quais a bandeira de Angola subia e noutra a de Portugal estava a descer.
JA – Então, está a falar de um maior amor pela pátria?
FAV – Sim. Um romantismo patriótico, onde os artistas começaram a criar grandes painéis revolucionários, incentivando a luta pela salvaguarda da independência e da soberania, não só a política, como também a cultural. Muitos artistas vão querer encontrar e colocar nas suas obras esse amor cultural, como Viteix, que, com recurso aos símbolos tchokwe, procura ir contra o antigo colonizador. Era a altura do então chamado “trabalho por amor à camisola”.
JA – Actualmente ainda existe esse romantismo?
FAV – Nem tanto, porque hoje a tendência é a abertura do mercado. Os artistas, na sua maioria, não oferecem obras, vendem-nas. Procuram viver da sua arte, como é o caso de Tozé, Don Sebas, Horácio dá Mesquita, Bastos Galiano, António Ole e Etona, artistas a tempo inteiro. Actualmente vê-se que eles fazem questão de criar um mercado próprio.
JA – Como caracteriza este novo mercado que desponta nas Belas Artes angolanas?
FAV – Esse novo mercado, apesar de estar repleto de vários estilos e ter uma temática mais abstracta, já nos ajuda a identificar os traços de cada criador. Hoje conseguimos olhar para uma obra e identificar o seu autor. É uma nova tendência, que começou há cinco anos, e nos permite ver uma intelectualização da pintura angolana e uma estilística única. Apesar de algumas serem “forçadas”, como o “Etonismo”, vemos também o surgimento de uma grande escola de pintura, a “transumância” pelas mãos do mestre Gonga, que ao abrir-se para a juventude tem transmitido a sua experiência a promissores talentos como Kiana, Sozinho Lopes, Ventura, Camuto e Fortunato Pangue.
JA – Pode-nos definir esta “transumância”?
FAV – A “transumância” é o processo em que os animais são levados de um local para outro no período da estiagem, em busca de pastos e água. No caso do estilo de arte do mestre Gonga, segundo uma conversa que tive com ele, trata-se de repor um vazio que faltava nas artes plásticas angolanas: uma fonte cultural onde se pudesse ir “beber”. Portanto, ele incita os seus discípulos a irem buscar a sua fonte nos contos, provérbios e até mesmo na pintura tradicional angolana. Já na descodificação formal do estilo, a transumãncia é caracterizada pelo movimento das suas figuras e o colorido das mesmas, através da técnica mista, com recurso aos materiais reciclados.
JA – Com isso quer dizer que a passagem de testemunho está a ser feita?
FAV – Sim. Quando mestres como Gonga ensinam aos jovens, ao ponto destes conseguirem vencer prémios como o Ensarte, um dos maiores concursos institucionais de Belas Artes, além do Prémio Nacional de Cultura e Artes, então acredito que a passagem de testamento já é um facto concreto. Mas temos visto isso de forma incipiente, já que só alguns artistas abrem os seus espaços.
JA – Porém, apesar desta abertura ainda não vemos tantas exposições de pintura, quanto as exibições de teatro ou lançamentos de discos…
FAV – Isto acontece porque, ao contrário das outras manifestações artísticas, as artes plásticas são caras, devido aos materiais. Em segundo lugar, devido aos próprios contornos que existem para se formatar uma exposição e, em terceiro, nós não temos ainda no país aquilo que eu chamo de uma classe média intelectual interessada na nossa cultura de todos os dias. Por exemplo, no caso da literatura, é normal que haja mais lançamentos de livros do que exposições, já que as pessoas se interessam por estes. Afinal, se tivermos em conta que o primeiro Presidente de Angola foi escritor e grandes individualidades do Governo também o são, então entenderemos a razão porque que o público se identifica mais com as outras expressões artísticas. Agora, é preciso que haja uma educação sobre a arte, porque há quem vá a uma exposição e considera simples bonecos os quadros que vêem. É uma completa falta de sensibilidade.
JA – O que se pode ser feito para corrigir a situação?
FAV – Ter dentro do nosso sistema normal de educação a disciplina das Belas Artes, como existe a Educação Visual Politécnica (EVP) e a Formação Manual. É preciso que as artes plásticas, a música, a dança e outras expressões culturais estejam dentro do nosso sistema de ensino. Outra solução é que os meios de comunicação social divulguem mais as artes plásticas, assim como os próprios artistas deveriam começar a estar mais organizados. Hoje, devido a essa carência, quando se fala de críticos de arte em Angola, como disse um dia Adriano Mixinge (que também é um dos críticos reconhecidos), apenas existem um ou dois bons. Mas isso é uma gota no oceano, que precisa ser mudada com urgência. Por isso, defendo a abertura de escolas, como a Nacional de Artes Plásticas, e a inserção do curso de Belas Artes no currículo da Universidade Agostinho Neto. É importante, igualmente, que a UNAP, os próprios artistas e a galeria Celamar, expandam mais os seus trabalhos, para ajudarem, assim, projectos como a Trienal de Luanda, que fez um hiper-movimento dentro das Belas Artes angolanas.
JA – Acredita assim que a situação melhore?
FAV – Penso que sim, apesar de ser preciso termos em conta que as artes plásticas, diferentemente das outras expressões, são elitistas e levam, normalmente, o artista a trabalhar sozinho com a agravante de que nem todos os visitantes de uma exposição sabem “ler” uma obra de arte. O facto de não existir uma loja especializada para a compra de material de trabalho é outro problema. O outro é o facto de ainda existirem artistas, como Hospital, do Huambo, a trabalharem de forma artesanal, fabricando os seus próprios pigmentos em casa, ou forçado a fazer uma longa viagem para comprar material. Isso, definitivamente, faz com que a obra de arte encareça e que os seus clientes não sejam individuais, mas sim, e quase sempre, institucionais, como bancos, e empresas nacionais e estrangeiras. É raro chegar a uma exposição e encontrar alguém que foi comprar individualmente uma obra. É também de realçar que ainda não temos um mercado de arte convencional. O que acontece é que às vezes o artista vende uma obra a um preço para um particular e outro para a instituição. Muitos artistas são forçados a exercer outra profissão para poder sobreviver, porque a arte é subjectiva.