Em entrevista ao Jornal de Angola, a Dra. Maria Muangala, do Centro Nacional de Oncologia, que dirige o projecto de desenvolvimento do serviço de Medicina Nuclear no Hospital Américo Boavida, iniciativa conjunta do Ministério da Saúde e da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), fala da aplicação da radiação na medicina, seus benefícios e os riscos a que estão expostos os profissionais e, também, o público em geral.
Jornal de Angola – O que é ser médica de medicina nuclear?
Antónia Muangala – A medicina nuclear é uma especialidade médica que utiliza fontes abertas de radionuclídeos, utiliza fontes não seladas de radionuclídeos, com finalidade diagnóstica e terapêutica para várias doenças. Para se ser médico de medicina nuclear tem de se fazer uma licenciatura em medicina e, depois, uma especialização nesta área.
JA – Que tipo de doenças trata?
AM – Nós ajudamos no diagnóstico de doenças cardíacas, principalmente em doença arterial coronariana, em exames de cintigrafias de perfusão do miocárdio, isso na área de cardiologia. Na área de oncologia, ajudamos no estadiamento de doenças cancerígenas, nos casos em que ao paciente é diagnosticado um cancro num órgão. Posteriormente o paciente é submetido a uma série de exames. Entre esses exames a medicina nuclear tem o seu contributo nas chamadas cintigrafias ósseas, em que se faz o varrimento do ósseo do corpo humano para ver se a doença está limitada apenas ao órgão específico ou se já tem alguma ramificação ou metástase óssea.
JA – Tem aplicação noutras áreas de medicina?
AM – Na área de oncologia a medicina nuclear tem uma utilidade muito específica no tratamento do cancro da tiróide. Depois de diagnosticado o cancro da tiróide o paciente é submetido a uma cirurgia e tem que fazer um tratamento de iodo radioactivo. O tratamento não se limita à cirurgia. O paciente é acompanhado por um médico de medicina nuclear que lhe administra uma dose de iodo radioactivo, de modo a queimar as células que não foram removidas com a cirurgia. Nas áreas de nefrologia participamos nos exames de cintigrafias renais, em que podemos diagnosticar casos de pielonefrites ou infecções. Também participamos em diagnósticos de doenças de alzheimer, que são os exames de cintigrafias de perfusão cerebral. Enfim, a medicina nuclear tem uma ampla utilidade como método complementar de diagnóstico.
JA – Os elementos radioactivos podem ser benéficos?
AM – Podem. Mas quando usados para diagnósticos e em alguns casos para tratamento, deve ser feito por pessoas qualificadas. Quando foi descoberto tinha, essencialmente, a finalidade de tratamento. Só mais tarde é que se começou a aplicar com outras finalidades.
JA – Quais são os usos mais comuns da radiação na medicina?
AM – A medicina nuclear usa radiações beta e radiações gama. A radiação beta é utilizada para tratamento, porque tem poder de penetração, e a gama para diagnóstico. Diferentes de outros métodos de diagnóstico, na medicina nuclear usamos fontes abertas – não capsuladas ou seladas, em forma de cápsula ou em forma de líquido. Quem manuseia este tipo de material tem que ter muito cuidado, já que, como são fontes não fechadas de radiação, os profissionais estão expostos. Quando injectamos material radioactivo não é o aparelho que emite a radiação, mas o próprio paciente que se torna numa fonte radioactiva. O aparelho vai apenas detectar a radiação que o paciente emite para transformar em imagens.
JA – Como evitar a contaminação por radionuclídeos?
AM – De forma geral, quem trabalha com radiações ionizantes passa por uma formação de protecção radiológica. Todo o trabalhador nesta área tem na sua mente três princípios: a distância, o tempo e a blindagem. A distância, porque quanto mais distantes estivermos da fonte radioactiva melhor para nós. Quanto ao tempo, quanto menos tempo em contacto com o material radioactivo, melhor. No princípio da blindagem, todo aquele que usa material radioactivo deve saber qual a melhor forma de bloquear a radiação. Daí a utilização, por exemplo, de aventais de chumbo, luvas e óculos plumbíferos. São essas as medidas básicas.
JA – Sendo matéria invisível, como sabemos quando ultrapassamos os limites?
AM – Os profissionais têm um dosímetro, que permite medir periodicamente o grau de radiação, em função das medidas de protecção e do tempo de exposição a materiais radioactivas. Em geral, é feita a leitura dos dosímetros mensalmente. Existe a autoridade reguladora de energia atómica e outros órgãos específicos que se encarregam de fazer o acompanhamento desses dosímetros, para averiguar se o trabalhador está mal protegido ou se ficou mais tempo exposto do que o recomendado.
JA – E o público?
AM – Os seres humanos estão expostos todos os dias a radiações naturais. Basta sair de casa e há casos em que nem é preciso sair. São as radiações que encontramos na crosta terrestre, as radiações cósmicas. Não temos como evitar uma exposição. Para ter uma ideia, o grau de exposição a radiações em termos percentuais corresponde a 70 por cento de radiações naturais e apenas 30 por cento de radiações por fontes artificiais. Mesmo que não tenha feito nunca um exame de raio-X, se fizer um rastreio radioactivo vai dar conta que tem radiação.
JA – É possível definir um grupo alvo?
AM – Temos, na primeira linha, os profissionais, que manuseiam elementos radioactivos e ficam expostos de forma contínua. Por isso, usamos dosímetros, para controlar o grau de exposição do trabalhador, tendo em conta todas as medidas de prevenção radiológica de que falámos. Existem medidas definidas que ajudam a evitar que sejam contraídas doenças por causa da exposição a elementos radiológicos.
JA – Qual o limite permitido?
AM – A unidade de medida dos efeitos biológicos da radiação é o Sievert (Sv), e a medida para os efeitos físicos é o gray. Os níveis de tolerância variam em função da parte do corpo exposta. Para o cristalino – os olhos, um trabalhador que está exposto de forma contínua é permitido, no máximo, 150 milésimos de Sv por ano, ao público comum apenas se recomenda 15 milésimos de Sv por ano. Para a pele, o limite máximo anual é de 500 milésimos Sv, para o público apenas 50 milésimos de Sv. Em casos especiais, pode ser usado para o trabalhador o limite máximo de 500 milésimos de Sv. Em termos de dose efectiva para um trabalhador que manuseia fontes radioactivas o valor médio por um período de cinco anos é de 50 milésimos de Sv, enquanto que para o público pode ser usado um limite maior desde que não ultrapasse um milésimo de Sv.
JA – Como uma pessoa sabe que ultrapassou os níveis?
AM – Dentro das medidas de protecção, além do avental de chumbo, utilizamos óculos plumbíferos para protecção dos olhos. Ao manusear um aparelho, tenho que usar luvas. Também existem dosímetros de dedo, que é usado além do dosímetro que se carrega no peito, para medir quanto se está a expor, por exemplo, as mãos ao manusear. É feita uma leitura mensal com o dosímetro para se saber dos níveis de radiação do trabalhador.
JA – Com que frequência surgem casos de doenças causadas por exposição a elementos radioactivos?
AM – É difícil estimar, porque não existem dados específicos sobre isso. Nós ainda não estamos a trabalhar com a radioterapia, que é uma fonte directa. Podíamos fazer uma pesquisa de uma forma geral com os raio-X que são radiações ionizantes, ainda assim é muito difícil, porque são situações só possíveis de apurar com base no histórico de cada paciente. As causas das doenças mais comuns variam muito. O caso é diferente quando se dão acidentes nucleares. Aí as pessoas estão expostas a doses extremamente altas, que ultrapassam os limites aceitáveis, não a doses toleráveis como quando se faz um exame de raio-X ou uma viagem de avião.
JA – Como é que o organismo reage a doses elevadas?
AM – Uma pessoa que tem uma exposição, de corpo inteiro, acima dos três a cinco grays desenvolve uma lesão da medula óssea 30 a 60 dias após a exposição. Isso em casos de acidentes nucleares. Se for submetida a uma dose superior a 15 grays começa a apresentar uma série de problemas gastrointestinais, como hemorragias, diarreias e o seu tempo de vida torna-se muito curto, entre 10 a 20 dias. Se for acima dos 20 ou 30 grays, começa a apresentar alterações no sistema nervoso central.
JA – Os níveis de radiação determinam o tempo de vida?
AM – Sim. Porque essas radiações em doses muito altas causam morte ao nível molecular. Daí ter ligação directa com o tempo de vida da pessoa. Se a pessoa tiver sido exposta a uma radiação na escala dos milésimos de Sv, acidentalmente ou por um exame, vai apresentar como sintomas clínicos náuseas, diarreias e ligeiras irritações na pele, mas o organismo consegue regenerar essas células. O que é preciso saber é que quanto maior a exposição à radiação maior o risco de uma pessoa desenvolver cancro e outras doenças, como anemia, pneumonia e até a falência do sistema imunológico. A radiação pode alterar o material genético das células, provocando o seu crescimento desordenado.
JA – Com que frequência uma pessoa pode submeter-se a exames de raio-X?
AM – O exame deve ser feito sempre que haja necessidade médica. Se é necessário, o paciente tem que fazer. Não aconselharia a fazer, por exemplo, três vezes numa semana, porque é muita radiação. Deixo uma recomendação aos técnicos: o paciente não pode ser sacrificado por causa de erros técnicos. Um técnico deve fazer bem o trabalho, para o paciente voltar a fazer o exame. É expor a pessoa à radiação desnecessariamente.
Angola tem regulamentação
António Monteiro, engenheiro de 42 anos, viu a sua vida “virar ao avesso” quando notou uma mancha vermelha nas costas. Disse à nossa reportagem que chegou a entrar em pânico porque dias antes tinha tido episódios de convulsão e fortes dores de cabeça, sem razão aparente.
Depois de se submeter a uma bateria de exames médicos ficou a saber que tinha sido exposto a material radioactivo, no local de trabalho. “Desde que me dei conta dessa situação que nada mais foi o mesmo. Fiquei em choque. Houve quem começasse a aventar a hipótese de eu estar com Sida. Foi duro para mim e para a minha família”, conta António Monteiro.
O engenheiro levou o caso a tribunal. Exigiu indemnização por entender que a entidade patronal, no caso, uma petrolífera estrangeira, tinha que ser responsabilizada por não o ter informado que o material que manuseava era uma fonte de radiação. Perdeu a causa.
Hoje, António Monteiro trabalha como gestor do seu próprio negócio. “Os médicos recomendaram que trabalhasse o mais longe possível de fontes radioactivas, e que inclusive devia diminuir as viagens de avião”, disse o engenheiro. O advogado Júlio César, que tomou contacto com os autos, disse não ter dúvidas de que a sorte do engenheiro “teria sido bem diferente, se, já naquela altura, estivesse em vigor o Regulamento sobre Radioprotecção”.
O Decreto Presidencial 12/12 tem entre outros objectivos a “protecção das pessoas contra a exposição das radiações ionizantes, a gestão de resíduos radioactivos e a protecção do ambiente”.
O Regulamento sobre Radioprotecção determina que “titulares de licenças e os empregadores ligados às actividades que envolvam exposição ocupacional” devem ser responsabilizados “pela protecção dos trabalhadores contra qualquer exposição ocupacional”.
A dose natural
O homem está exposto continuamente à radiação de fontes naturais por causa de gases radioactivos presentes na atmosfera, como o radónio. Por ano, a dose média de radiação natural é de 2,4 mSv (milésimos de Sievert, unidade que mede os efeitos biológicos da radiação).
No acidente da central japonesa de Fukushima 1, a mais atingida pelo terramoto, o Governo informou que o nível de radiação alcançou 0,6 mSv por hora – apenas quatro horas de fuga radioactiva equivalem à radiação toda a que uma pessoa está exposta ao longo do ano.
As radiografias
Além da radiação natural, uma pessoa pode submeter-se a doses mais altas em situações bastante corriqueiras, como um exame de raio-X ou uma viagem de avião. Ainda assim, as doses são bem inferiores às do acidente no Japão.
Para fins de comparação, a taxa de radiação em Fukushima equivale a submeter-se a seis radiografias do tórax por hora, o que, no final de um ano, representaria quase duas mil vezes a dose natural e mais de 260 vezes a dose máxima estipulada para quem trabalha numa central nuclear.
Fonte: JA