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    A perseverança de “Nga Petelo”

    Nga Petelo aprendeu os primeiros acordes de violão com emigrantes cabo-verdianos no Bairro Operário e desde então nunca mais abandonou a sua afeição às mornas e ao cancioneiro tradicional luandense.
    Embora seja relativamente desconhecido do grande público, a magnitude artística de Nga Petelo está consubstanciada na crença à música e no simbolismo de ter gravado, aos 80 anos, a sua primeira compilação discográfica.
    Cantor e compositor, Nga Petelo ainda guarda as memórias da sua infância e adolescência: “conservo as lembranças das mornas no Bairro Operário, berço da minha infância, onde havia uma casa comercial de nome “Swing”, propriedade do senhor Nunes, um entusiasta que tocava guitarra. Foi neste estabelecimento, local de concentração da maior parte dos cabo-verdianos, onde ouvi e aprendi as primeiras mornas da minha vida. De facto, eu já sentia uma certa inclinação para a música e ficava encantado a apreciá-los a cantar a nostalgia das suas mornas. Depois cativei amizade com o Lino, indivíduo que acabou por ser o meu primeiro professor de violão e me apresentou aos demais cabo-verdianos”.
    Das frequentes tertúlias e da experiência musical adquirida através do convívio com cabo-verdianos, Nga Petelo ajudou a fundar o agrupamento “Wanga ya Xicalela”, pequena formação musical que defendia uma prática artística de feição mais identitária.

    Escolaridade e ofícios

    Os parcos recursos financeiros dos seus pais não permitiram a prossecução regular dos seus estudos, tendo frequentado apenas a Escola do São Paulo, em Luanda, onde concluiu a quarta classe, nível de escolaridade de relativo prestígio na época. “O pagamento das propinas e a compra de material escolar eram as grandes dificuldades da maioria dos colonizados que pretendiam continuar os seus estudos”, recorda Nga Petelo.
    Filho de Manuel Gonçalves da Cunha e de Paula José Belchior da Cunha, Pedro Gonçalves da Cunha nasceu em Luanda, no dia 13 de Julho de 1932. Aos 13 anos de idade, depois de concluída a quarta classe, Nga Petelo começou a trabalhar como aprendiz de mecânico de automóveis com o mestre Magalhães Ferreira, um colono de quem guarda, infelizmente, a gratuita e reiterada agressividade e a prática dos maus tratos. Em 1951, com 19 anos, entrou para a SOTECMA, uma empresa que fabricava máquinas para descasque de café, onde permaneceu durante 50 anos, como serralheiro civil de soldadura.
    Embora auferisse um salário magro, Nga Petelo gostava do que fazia, tendo sido indicado para responsável da área oficinal, pela experiência adquirida, reconhecimento do seu empenho e capacidade profissional. O cantor, reformado desde 2001, lembra os nomes dos antigos patrões da SOTECMA: Alberto Cardoso de Matos e Manuel Cardoso de Matos, gémeos e donos da fábrica, hoje conhecida por Nova SOTECMA.

    Primeiro grupo

    Das frequentes tertúlias e da experiência musical adquirida através do convívio com os cabo-verdianos, surgiu em 1958 o “Uanga yá Xikelela” (Feitiço Negro), pequena formação musical que Nga Petelo ajudou a fundar com Kituxe (tambor), Bebiano (puíta), Artur da Cunha (vocalista), tendo entrado depois o Antoninho, Duia e Bonga, defendendo a prática de uma música de feição mais identitária. Convidados pelo conjunto Bota Fogo, participam em 1961 num festival de música angolana na Liga Africana, em substituição dos “Kimbandas do Ritmo”. Era uma época de forte repressão policial e Agostinho Van-Dúnem e Nga Petelo foram substituir os “Kimbandas do Ritmo”. Na classificação do festival, o “Uanga yá Xikelela” ficou em primeiro lugar.

    Outra paixão

    O futebol foi outra das paixões de Nga Petelo: “sou do tempo em que o gado descia das barrocas do Miramar para o matadouro situado no Bungo. Quando avistássemos a poeira no ar, tínhamos a certeza que havia bois à vista. O perigo advinha do facto da passagem ser estreita, obrigando-nos a subir às árvores para deixar o caminho livre para a manada, antes do início das nossas partidas de futebol. Como qualquer criança, tudo isso são ocorrências que me marcaram profundamente. Para além da música, a minha outra grande paixão, desde os meus 13 anos, é o futebol, que, acredito, tenha contagiado os meus filhos”.

    Família e serenatas

    Amante à moda antiga, Nga Petelo lembra o tempo da união com a sua mulher: “Não escrevi muitas cartas de amor, mas tocava e cantava canções românticas à janela da minha amada. Conheci a minha actual esposa por intermédio do Timóteo, meu amigo já falecido, que também tocava viola e frequentava a casa dos pais dela. Foi o Timóteo que me conduziu à casa da mulher que é hoje a minha esposa. O namoro começou com uma simples amizade e depois da sua família ter tomado conhecimento da ocorrência, enviei a respectiva carta de pedido. Não demorou para as famílias se reunirem. Da parte da minha esposa, Dona Isaltina da Conceição Van-Dúnen da Silva Cunha estiveram presentes a mãe, Dulce Pereira dos Santos Van-Dúnem “Dudu” e a irmã, Filipa Pereira dos Santos Van-Dúnen, já falecidas, pois o pai já era falecido. A partir desta altura iniciámos uma vida marital e casámos cinco anos mais tarde pela Igreja Católica”, lembra o cantor.

    Luta armada

    Quando eclodiu o dia 4 de Fevereiro de 1961, data do início da luta armada de libertação nacional, o “Wanga ya Xicalela” estava a ensaiar em casa do cantor, no Bairro Marçal. Na ocasião, o seu pai apareceu e disse: “parem já com esta música. Vocês não sabem o que se está a passar, houve qualquer coisa de grave e a polícia está a matar indiscriminadamente”. Foi então que, naquele sábado, se suspendeu a música e sob a angústia e incerteza, o sol se pôs e começou a noite, obrigando que cada membro do grupo seguisse o seu rumo.

    Fonte: JA

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