O historiador João Cláudio do Nascimento Gime defendeu, em Cabinda, a necessidade de uma maior divulgação dos factos históricos e culturais protagonizados pelos ancestrais da “famosa aldeia do Tchizo”, para que as actuais gerações sejam informadas sobre a sua importância e o seu impacto na cultura tradicional angolana.
João Cláudio do Nascimento Gime considera imprescindível uma pesquisa meticulosa, tendo em conta a complexidade dos factos e das fontes disponíveis. A aldeia do Tchizo, uma pequena povoação que até há 20 anos era habitada por uma comunidade fechada ao exterior, situada numa montanha, na periferia da cidade de Cabinda, tem um significado histórico-cultural de revelo, porque é considerada o centro do poder tradicional dos Macongo, Maloango e Mangoio.
Esta aldeia, habitada até à Independência Nacional 350 pessoas, segundo dados da “Administração Municipal de Cabinda”, descendentes da mesma família, é das poucas comunidades de Cabinda onde se observam elementos culturais legados pelos ancestrais que aí viveram, durante longos anos, como principais figuras na hierarquia tradicional.
Tchizo, designação proveniente do nome de Matchizo Nkonko, primeiro rei que a governou, esteve administrativamente vinculada ao reino de Ngoio até ao declinar do século XIX e posteriormente foi governada pelo rei Mpanzo Tchi-Muamina. Após a morte deste, o método de governação transferiu-se para o sistema de poder hereditário patriarcal, de pai para filho, com a designação de Ntoma-Nsi (sacerdote tradicional).
João Cláudio do Nascimento Gime referiu que, para assumir tal cargo, a pessoa indicada, mesmo estando no direito de sucessão, devia, acima de tudo, possuir poder sobrenatural para evocar Nzambi Mpungo (Deus Supremo) para dar solução aos problemas vividos pelas populações: falta de chuva, crise de capturas de peixe no mar, carência de animais durante a caça, pouca produção de vinho de palma (mangevo).
Este poder sobrenatural, acrescentou João Cláudio do Nascimento Gime, passa de pai para filho, com a designação de Ntoma-Nsi (sacerdote tradicional). Depois de ser inspirado pelo Ntoma-Nsi (sacerdote tradicional) produzia resultados favoráveis, que iam alterar a falta de peixe ou de chuvas.
Para tal, bastava que as populações se dirigissem à aldeia de Tchizo, propriamente ao santuário Banda-Impó, onde o “Ntama- Nsi” (sacerdote tradicional) cavava na terra um buraco em forma de cruz, deitando neste buraco vinho de palma e aguardente, ao mesmo tempo que evocava os poderes de Nzambi Mpungo e da sereia Lusunzi, espírito protector do Tchizo, para repor em abundância tudo quanto escasseava.
Nesta cerimónia eram abençoados todos os instrumentos de trabalho: espingardas, enxadas, catanas, machados, redes de pesca.
Leis tradicionais
O historiador João Cláudio do Nascimento Gime disse ao Jornal de Angola que, para além do poder sobrenatural ser critério determinante para a ascensão ao poder na aldeia de Tchizo, consta também na história que, a dada altura, foi implantada na aldeia uma espécie de instituição judicial que se encarregava da elaboração de leis tradicionais para regular o comportamento da sociedade sobre o cumprimento de rituais e de outros dogmas deixados pelos antepassados.
Enquanto nas actuais sociedades as leis são estruturadas por artigos e capítulos, na aldeia do Tchizo, eram codificadas por nomes de diferentes autoridades tradicionais já falecidas e ainda veneradas naquelas comunidades, tal como é o caso da Lei Lusunzi originária da sereia protectora de Tchizo.
João Gime salientou que esta lei visou punir todas as pessoas que tivessem relações sexuais no chão. Caso violassem este “preceito”, denominado Lusunzi, os infractores eram obrigados a dirigir-se até à aldeia de Tchizo, para pagar multa e posteriormente serem submetidos a um tratamento tradicional, sem o qual eram mortos à pancada.
A sereia ”Lusunzi”, figura de relevo na cultura tradicional, tal como conta João Gime, habitava num bosque e não no mar. Tinha duas caras, sendo uma preta e outra branca, e era filha da sereia Mbonze, que viveu durante muito tempo numa pequena lagoa denominada Luozi, localizada na planície do Yabi, a Sul da cidade de Cabinda.
Os fiscais Bakama
A fiscalização destas leis tradicionais era feita segundo os rituais por intermédio dos “Bakama”, zeladores das “legislações” e dos princípios ético-morais da sociedade, afirmou o historiador.
“Os Bakama, uma organização secreta que tem como santuário o morro de Tchizo, são pessoas mascaradas vestidas com folhas de bananeira. Eles têm o poder de amaldiçoar. Poucas são as pessoas que ousam aproximar-se deles, sobretudo nos funerais de nobres, senhores ricos da terra, nas reuniões importantes destinadas a regular conflitos que afectam os valores morais e culturais” sublinhou João Cláudio do Nascimento Gime.
O estudioso da cultura tradicional disse ainda que na vigência de regime de sucessão hereditário patriarcal (pai para filho), tal como consta nos anais de aldeia de Tchizo, o primeiro Ntoma-Nsi (sacerdote tradicional) que a chefiou foi Macaia Mavaba. Sucedeu-lhe Vaba Tchi-Macaia. O terceiro líder foi Tchi-Luemba Tchi-Tula, o quarto Ndjimbi Nkongo e o actual sacerdote tradicional é Vicente Manguebele.
Ndjimbi Nkongo, pai do actual Ntoma- Nsi, Vicente Manguebele, faleceu em 21 de Setembro de 1994 e foi sepultado no cemitério de Mbulo Buwanza. Foi um dos anciãos tradicionais mais venerados pelos habitantes de Cabinda, pelo simples facto de ter conseguido, durante o seu consulado de 53 anos, estabelecer e fazer cumprir leis tradicionais de carácter persuasivo e educativo, como por exemplo a preservação da castidade pelos jovens menores, com base na proibição de actos sexuais antes de atingirem a puberdade.
O historiador explica que mesmo de depois de atingir a fase da puberdade, a jovem era obrigada a cumprir o ritual de Tchicumbi, caso contrário, quando se envolvesse em actos sexuais, o casal infractor tinha que dançar nu perante familiares e autoridades tradicionais.
A existência deste ritual, referiu, veio incutir na juventude mais responsabilidades no que diz respeito ao sexo, dando prioridade ao casamento para constituir família. Pela sua rígida forma de governação de um povo que o tinha como ídolo e ao mesmo tempo sentenciador, Ndjimbi Nkonko era idolatrado.
Ndjimbi Nkonko
Nos tempos passados, Cabinda era frequentemente assolada por fortes calamidades naturais que causava m grandes danos à sociedade. Foram interpretados pelos anciãos e autoridades tradicionais como a manifestação de espíritos malignos ou mesmo de poderes místicos de ancestrais já falecidos que se julgavam atraídos pela população face a uma eventual transgressão de algum mandamento.
Estas catástrofes, disse João Cláudio do Nascimento Gime, que normalmente provinham de chuvas prolongadas, que originavam desabamento de casas, destruição de culturas ou secas, foram situações que obrigaram Ntoma Nsi a impor o princípio da bênção tradicional, na tentativa de obter a protecção dos espíritos.
Com o andar do tempo, afirma João Cláudio do Nascimento Gime, Ndjimbi Nkonko, vendo que os efeitos de bênção tradicional estavam a surtir os resultados desejados, começou a sensibilizar e a educar a sociedade para a era necessidade introduzir no sistema tradicional a realização deste ritual.
Qualquer projecto de impacto social ou económico que fosse construído na região em benefício das comunidades, recebia a bênção tradicional no início da obra e no final. A bênção, acrescentou, pode ter como objecto ou fundamento a aquisição individual ou colectiva de um bem precioso ou, nalguns casos, ter como móbil a invocação da prosperidade social, da fecundidade, abundância e a paz.
Fonte: JA