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    Malária

    MALÁRIA é uma das principais doenças parasitárias tropicais, com uma incidência que ultrapassa 500 milhões de casos anuais. A doença distribui-se pela África, ao sul do Saara, diversas regiões tropicais-equatoriais da Ásia, Oceânia e Américas. No Brasil, a principal área endémica encontra-se na região amazónica, causando meio milhão de casos anualmente. A doença apresenta alto grau de letalidade em gestantes e crianças, sendo um grave problema para aqueles que adquirem a doença pela primeira vez, devido à ausência de anticorpos protectores, os quais tendem a diminuir os sintomas e amenizar o quadro clínico.

    O agente etiológico da Malária é o Plasmódium. As principais espécies de Plasmódium são P. falciparum, P. vivax, P. malariae e P. ovale. O P. falciparum é a espécie mais comum na África e causa a forma mais grave de Malária, ao passo que o P. vivax é a forma mais comum no Brasil, sendo a apresentação clínica menos grave.

    A doença é transmitida pela picada do mosquito Anopheles, o qual inocula no vaso sanguíneo do homem uma grande quantidade de esporozoítos que estão localizados nas glândulas salivares das fêmeas do mosquito. Em poucos minutos, os esporozoítos penetram no tecido hepático, ocorrendo a divisão nuclear destas estruturas formando uma célula multinucleada denominada de esquizonte. Este processo dura entre 1 e 2 semanas e é denominado de esquizogonia hepática, quando ocorre a ruptura desta célula liberando milhares de merozóitos na corrente sanguínea. Estas células invadem as hemácias e formam outra estrutura que promove a divisão do parasita (esquizonte), podendo também, em algumas hemácias, formar estruturas sexuadas que são importantes para a manutenção do ciclo da doença, os gametócitos. Este processo de multiplicação celular nas hemácias é denominado esquizogonia eritrocitária, até que as hemácias se rompem e liberam novamente uma grande quantidade de merozoítos, culminando, neste momento, com os primeiros sintomas da Malária, entre eles a febre típica com calafrios. Estes merozoítos liberados com a ruptura das hemácias invadem outras hemácias e o processo se mantém. O ciclo se fecha quando o mosquito, durante o repasto sanguíneo, suga as formas sexuadas do Plasmodium (gametócitos), os quais se fundem e geram posteriormente os esporozoítos que podem infectar outros humanos quando picados. Nas espécies P. vivax e P. ovale, durante a esquizogonia hepática, ocorre a formação de estruturas que ficam dormentes no fígado, denominadas de hipnozoítos, os quais podem se reactivar meses depois, levando o paciente a apresentar recaídas da Malária, mesmo fora de área endémica.

     

    Figura 1: Ciclo de transmissão da Malária. 1. A picada do mosquito promove a transmissão de esporozoítos na corrente sanguínea do homem. 2. Os esporozoítos migram para o fígado, onde fazem a esquizogonia hepática. Observe que, neste ciclo genérico, estão representados os hipnozoítos que ocorrem em P. vivax e P. ovale. 3. Após a esquizogonia hepática, ocorre a liberação de merozoítos na corrente sanguínea, onde ocorre a invasão das hemácias promovendo a esquizogonia sanguínea e também a formação dos gametócitos. 4. Os gametócitos são sugados pelos mosquitos e promovem a reprodução sexuada. 5. As etapas de desenvolvimento do parasita no vector não estão representadas.

    ACHADOS CLÍNICOS

    Malária Não Complicada

    A primoinfecção é caracterizada pela ocorrência de paroxismos febris. Os paroxismos iniciam-se com calafrios, acompanhados de mal-estar, cefaleia e dores musculares e articulares. Náuseas e vómitos são sintomas frequentes, podendo também ocorrer dor abdominal intensa. A frequência dos sintomas está descrita na Tabela 1. Em algumas horas, inicia a febre alta que produz adinamia e prostração; a esta fase se segue um período de sudorese profusa, com melhora progressiva do estado geral. Em geral, pacientes com infecção por P. falciparum, P. vivax e P. ovale têm paroxismos febris a cada 48 horas (febre terçã), enquanto aqueles infectados por P. malariae têm paroxismos a cada 72 horas (febre quartã).

    Nos indivíduos que habitam regiões endémicas de Malária, este quadro de paroxismo de febres (paludismo) não ocorre, sendo mais comum a ocorrência de um ou poucos dos sintomas acima descritos. Sinais clínicos de anemia, esplenomegalia e hepatomegalia geralmente estão presentes.

     

    Tabela 1: Sintomas da Malária não complicada

    Sintoma Porcentagem
    Febre 100%
    Cefaleia 100%
    Fraqueza 94%
    Sudorese 91%
    Insônia 69%
    Artralgia 59%
    Mialgia 56%
    Diarreia 13%
    Dor abdominal 8%

     

    Malária Complicada

    Em geral, a Malária é classificada como não complicada, conforme já descrito. Já nos casos graves, a doença expressa complicações em diversos órgãos, sendo reconhecida por alguns sinais e sintomas clínicos (Tabela 2). A Malária causada pelo P. falciparum pode acometer outros órgãos, como a Malária cerebral, caracterizada por sintomas de encefalite (sonolência, prostração intensa, convulsões, alteração do nível de consciência até o coma). Segundo a Organização Mundial de Saúde, a definição de Malária cerebral exige a presença de coma profundo (escala de coma de Glasgow < 9). O comprometimento renal é caracterizado por oligúria e urina escura. A Malária pulmonar pode variar desde taquipneia e dispneia com alterações discretas na ausculta até edema pulmonar e franca insuficiência respiratória. Icterícia é um sinal de gravidade da doença, não sendo comum nos casos leves a moderados da doença.

     

    Tabela 2: Critérios de Malária complicada

    Achado clínico Definição
    Malária cerebral Coma profundo excluindo outra causa de encefalopatia
    Convulsões generalizadas Mais de duas crises convulsivas em 24 horas
    Anemia grave Concentração de hemoglobina sanguínea < 5 g/L ou hematócrito < 15%
    Hipoglicemia Concentração de glicose sanguínea < 40 mg/dL
    Insuficiência renal aguda Concentração de creatinina plasmática > 3 mg/dL com débito urinário inferior a 400 mL em 24 horas (12 mL/kg/dia em crianças)
    Edema pulmonar e síndrome da angústia respiratória do adulto Se possível, com comprovação radiológica do edema pulmonar e monitoramento de pressão capilar pulmonar ou venosa central
    Choque circulatório (“Malária álgida”) Choque vascular
    Acidose metabólica Níveis sanguíneos de bicarbonato abaixo de 15 mmol/L e pH sanguíneo abaixo de 7,35
    Alterações de hemostasia Hemorragias retinianas e gengivais, trombocitopenia
    Hemólise intravascular maciça ou febre hemoglobinúrica (“blackwater fever”) Urina escura, que pode ocorrer após início do tratamento
    Hipertermia  
    Hiperparasitemia Parasitemia acima de 100.000 parasitas/mcL
    Icterícia  
    Ruptura esplênica  

     

    DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

    Como regra geral, todo viajante que retorna de uma área endémica dentro de 3 meses do início da febre deve ser considerado como portador de Malária até que se prove o contrário. Ataques mais tardios podem ocorrer nos casos de recrudescência devido à presença de hipnozoítos (P. vivax e P. ovale) dentro de 3 anos da infecção inicial.

    A Malária deve ser diferenciada dos quadros virais respiratórios, incluindo a gripe. Febre tifoide e outras doenças bacterianas também podem ser semelhantes ao paroxismo da Malária. Outras doenças tropicais devem ser diferenciadas, como dengue, febre de Katayama (esquistossomose aguda), leptospirose, riquetsioses e febre amarela.

     

    EXAMES COMPLEMENTARES

    Exames Laboratoriais

    A anemia é um achado constante na Malária e progride com a evolução da doença. O leucograma é variado, não sendo característico. Outros exames tornam-se alterados à medida que aumenta o comprometimento sistémico e a intensidade do órgão acometido. Assim, pode ocorrer aumento das transaminases, dificilmente ultrapassando o valor entre 5 e 10 vezes o limite superior. Pode ocorrer hiperbilirrubinemia, com predomínio da forma indireta. Hipoalbuminemia é encontrada nos casos mais graves.

    O exame de urina pode revelar hemoglobinúria e alterações indirectas do acometimento renal (cilindros hialinos ou granulosos). O exame radiológico do tórax pode revelar infiltrado alveolar nos casos de Malária pulmonar.

     

    Exames Específicos

    O diagnóstico laboratorial da Malária baseia-se no achado do parasita em amostras de sangue periférico. A gota espessa é o exame directo mais utilizado nas áreas endémicas devido à alta sensibilidade, porém, necessita ser realizado por profissionais treinados. Exames sorológicos não distinguem infecções actuais de pregressas, podendo ser usados para pacientes que nunca viajaram anteriormente para área endémica. O uso da reacção em cadeia da polimerase (PCR) apresenta alta sensibilidade e, conforme a técnica, pode distinguir a espécie; apresenta alto custo para ser utilizado em larga escala nos países tropicais, onde a doença é endémica.

    Fitas diagnósticas (testes rápidos) são fáceis de utilizar e dispensam electricidade, mas ainda não apresentam alta sensibilidade como o exame directo, além do custo elevado para ser utilizado em larga escala.

     

    TRATAMENTO

    O tratamento da Malária depende da origem do paciente. As drogas são escolhidas conforme a espécie de Plasmodium, a gravidade da doença e a resistência regional aos anti-palúdicos. O objetivo primário do tratamento é a erradicação dos estágios assexuados sanguíneos do parasita. O objectivo secundário é eliminar os hipnozoítos (P. vivax e P. ovale) e os gametócitos, interrompendo a transmissão vectorial.

    No Brasil, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, em Nota Técnica de 2007, recomenda o emprego de derivados de artemisina no tratamento da Malária pelo P. falciparum. Considerando isso e os trabalhos actuais, recomendam-se os esquemas descritos a seguir.

     

    Malária Não Complicada por P. vivax

    A Malária não complicada causada por este agente no Brasil pode ser tratada com medicação oral, sem necessidade de internamento, devendo ser observado o aparecimento de sinais de gravidade no momento do diagnóstico e tratamento. Orienta-se, nesses casos, o controle de cura com teste directo (gota espessa) após 2, 6, 10 e 15 semanas. A droga de escolha é a cloroquina 25 mg/kg/dia por 3 dias em tomada diária, associada com a primaquina 0,25 mg/kg/dia durante 14 dias. A primeira droga é utilizada como esquizonticida sanguíneo (destruindo as formas assexuadas do parasita no sangue), e a segunda atua como gametocida e também destrói as formas hipnozoitas (Algoritmo 1). Os casos de Malária grave por P. vivax são tratados como Malária grave causada por P. falciparum. Este esquema é contraindicado para gestantes e menores de 6 meses.

     

    Malária Não Complicada por P. falciparum

    A Malária não complicada por P. falciparum pode ser tratada com um esquema que associa o artemeter e a lumefantrina (Coartem®). A droga é usada conforme o peso, em esquema descrito na Tabela 3. Em alguns locais onde esta droga não esteja disponível, pode ser utilizado o quinino 15 a 30 mg/kg/dia a cada 12 horas durante 3 dias (esquizonticida rápido), associado com doxiciclina 100 mg a cada 12 horas por 5 a 7 dias (esquizonticida lento). Este esquema não é recomendado para menores de 8 anos de idade. O controle de cura é feito com gota espessa realizada no 3º dia de tratamento, após 1, 2, 4 e 6 semanas do início do tratamento. Outra opção de tratamento é a mefloquina, utilizada na dose de 15 a 20 mg/kg em dose única, sendo contra-indicada no 1º trimestre de gestação.

     

    Malária Complicada por P. falciparum

    A Malária complicada exige administração parenteral das drogas esquizonticidas (rápidas e lentas). No Brasil, utiliza-se o artesunato intravenoso (esquizonticida rápido) com dose de ataque de 2,4 mg/kg e 1,2 mg/kg após 4, 24 e 48 horas da primeira dose. Associa-se a clindamicina (esquizonticida lento) na dose de 20 mg/kg/dia divididos a cada 12 horas por 5 a 7 dias. O artemeter é um derivado de artemisina equivalente ao artesunato, mas disposto na apresentação para aplicação intramuscular, sendo usado na dose de 3,2 mg/kg/dia como ataque, seguindo de 1,6 mg/kg/dia por 5 dias.

     

    Tabela 3: Tratamento da Malária não complicada por P. falciparum com Coartem® (artemeter e lumefantrina)

    Peso Dose
    5 a 14 kg 1 comprimido a cada 12 horas por 3 dias
    15 a 24 kg 2 comprimidos a cada 12 horas por 3 dias
    25 a 34 kg 3 comprimidos a cada 12 horas por 3 dias
    > 35 kg 4 comprimidos a cada 12 horas por 3 dias

     

    TÓPICOS IMPORTANTES

    A Malária é uma doença infecciosa que atinge grandes áreas do planeta, podendo ser mais grave nos primo infectados, em crianças e gestantes.

    Caracteriza-se como uma síndrome febril aguda em paroxismos com náuseas, fraqueza, mal-estar, cefaleia e artralgia.

    A forma complicada acarreta alteração do nível de consciência, insuficiência respiratória e renal, coagulopatia, além de carga parasitária elevada e anemia severa.

    As alterações laboratoriais mais comuns são anemia, discreta alteração de transaminases, podendo ter aumento de bilirrubinas (indirecta), creatinina e hipoxemia, conforme a gravidade.

    O diagnóstico confirmatório é realizado com exame directo do sangue (gota espessa), mas outros testes podem ser utilizados, como PCR, fitas de teste rápido e até mesmo sorologia, com sensibilidade decrescente.

    O tratamento é realizado conforme a gravidade e a espécie. O esquema actual para Malária por P. vivax consiste em cloroquina e primaquina. A Malária por P. falciparum não complicada é tratada com artemeter associado à lumefantrina e a forma grave, com artesunato ou artemeter associado com clindamicina.

    Especialista em Infectologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
    Doutor em doenças infecciosas e parasitárias pela Faculdade de Medicina da USP

    Felipe Francisco Tuon

    Fonte: Medecinanet

    3 COMENTÁRIOS

    1. Boa noite.
      Gostava, se possível, saber a resposta a algumas questões:

      1. Uma pessoa infetada com malária, depois de realizar tratamento, fica ou não livre do parasita para sempre? Ou ele permanece adormecido no organismo (fígado/sangue)?

      2. O que significa uma pessoa estar “tratada”? Que ficou sem sintomatologia mas ainda possui o parasita podendo vir a sofrer novamente de malária? Ou que ficou sem sintomatologia e sem o parasita no organismo?

      3. Um homem infetado ao ter relações sexuais com uma mulher, pode infetá-la? E se engravidar a mulher, o filho pode nascer com malária?

      4. Uma pessoa que tenha sido infetada e tratada e for novamente infetada por um vetor, fica mais ou menos doente que a primeira vez? Há “limite” de infeções por pessoa? A pessoa pode morrer na 2a vez que for infetada pelo facto de não ser a primeira vez?

      Se me poder responder a estas perguntas agradeço.

      • 1 Depois de realizado o tratamento adequado a pessoa fica livre do parasita e consequentemente livre da sintomatologia, respondendo com isso a 2º pergunta.
        3 A malária nao se transmite através de relaçoes sexuais.
        4 Se se fica mais ou menos doente tudo depende da parasitemia pode haver mais parasitemia na primeira do que na segunda vez ou vice e versa. Nos países endemicos como o meu (Angola) as pessoas tendem a ter sintomatologia mais florida devido a recurrencia da doença, pode aparecer hepatoesplenomegália.
        Espero ter esclarecido as suas dúvidas.

    2. A malaria bem tratada ,a pessoa fica livre de parasita.para dares conta se persiste ou nao parasita,e so fazer um P.P para veres se tens ou nao e a unica forma de veres se a parasita persiste ou nao no teu organismo

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